domingo, 27 de dezembro de 2009

últimos anos

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Até onde vai no fundo a terra do quintal?, pergunta o neto com uma das mãos ainda segurando a corda há tanto tempo firme do balaço. Explica o avô que sob a terra tem pedra e sob a pedra tem lava, que é pedra líquida e quente. Geografia, você vai aprender na escola. No futuro, o neto se lembrará da terra, da pedra, da lava, além de saber de outras coisas de carbono e cadarço amarrado; sem se lembrar especificamente daquela fala subterrânea do avô morto. Derreter uns restos de pesadelos que sobraram como pedra quente por dentro o dia todo, esvaziar os armários dos vestidos tristes que tinha a mãe. Lembrar-se-ia apenas da imagem idosa, parada perto da árvore, e de seu balanço hoje rompido, caminhando com cuidado para não tropeçar nas raízes que sobressaíam o solo e as folhas, recuando na direção do profundo.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Marisa



(Para Ciro Trevisan)

Ela abandonou a leitura do meu livro preferido dando justificativas ralas, arrastou-o em minha direção, parecendo ser gentil, mas não foi intencional. Meio resguardada, colocou mais um grampo no cabelo e não olhou para mim, apoiando a mão no queixo e o cotovelo puído na mesa – rua sem trânsito, paraíso das três da tarde, ela disfarçando a blusa rendada do pijama com sutiã colorido por baixo (eu já decorara todas as dezoito cores e estampas), casaquinho de lã embolotada por cima. Seria mais fácil se ela gritasse, como sempre, e jogasse coisas em mim, recorrendo à pilha de revistas femininas compradas por nós duas compulsivamente, capas ideais, sapatos ideais, sexo ideal, cor pra cabelo ideal para a sua cor de pele e tipo de rosto, promessa política solene de satisfação, sucesso profissional, receita de brownie. Seria mais fácil ver Marisa esgoelando morrendo como-sempre, jogando coisas em mim como lhe ensinara o cinema – mas estava caladinha, caladinha qual criança entediada a ponto de chorar, expelindo quantidades paquidérmicas de meleca verde pelas narinas. Olhei para cima: era o mesmo restaurante com teto de vidro no qual nós duas nos sentáramos há quatro ou cinco meses arregaçados fodidos e listamos nos guardanapos os nomes de todas as pessoas que gostaríamos de atirar de um prédio de vinte andares. Marisa, que nome estranho esse seu, mistura de maré, maresia, brisa, inadequado para uma paulistinha sufocada que jamais tirava a maquiagem para dormir (na manhã seguinte reclamava de como a pele estava uma merda, olha só, quase vinte e três anos e essa espinha aqui, tô um panda, olha o rímel que bosta) e embrulhava maçãs verdes no papel filme e as colocava dentro da bolsa de pano colorido para aquele intervalo insuportável entre um corriqueiro ou outro, enquanto espera o próximo metrô e toma sem parar um gole de água podre da garrafinha remelenta há meses levada por aí durante todas suas cruzadas pessoais. Cólica, dor de cabeça, remorso. De repente a vida seria um flash do tempo passado com Marisa. Acendeu o cigarro (“muletas para os gestos”, repetiria, repetiria), pediu desculpas pela manchinha ali nas primeiras páginas, era café, tossiu, um pequeno acidente, espero que você não note, não vai notar, vai?
Nosso primeiro encontro foi Interior/dia, Marisa classificou, disse que poderia fazer um curta dele quando não tivesse criatividade para inventar nada e colocar o meu nome em branco numa tela escura, assim, no cantinho, logo que a história acabasse. Interior/dia. Eu a conheci no metrô, o interior, enquanto dia era de chuva, a vi pela primeira vez quando um trem passou e ela desceu, atrás de mim, enquanto eu esperava. Vi aquela coisa passando, moça baixinha e branquela, olhos pequenos e sérios, cara de foto 3x4, o mau humor sublime, latente, divino, cabelo curto mendigo indie sem pentear sem lavar, tinha uma cor estranha que depois ela me explicou ser conseqüência uma sucessão insana de tintas pretas, verdes, laranjas, ruivas, amarelas; água oxigenada o bastante para descolorir os pêlos das coxas das mulheres do prédio inteiro onde eu morava. Marisa usava sapatos de plástico esquisitos, camiseta preta deixando alça de sutiã liberta, saia de pano até o joelho, terminando de desbotar, e dava mordidas desinteressadas na superfície verde desamadurecida de uma maçã, mastigava, cheia de tédio, olhava no relógio o horário previsto, ia e voltava por poucos metros do corredor, perto de mim. Perdão, eu repetirei, tomada após tomada, até que fique perfeito como se fosse real. Quando o trem chegou, trapaceei, entrei no mesmo vagão que ela, que sentou sem me notar num cantinho no sentido contrário da partida. Tirou da bolsa, previsivelmente, um livro. Me aproximei. Também previsível, como ela, tentei fazer um sorriso bonito e perguntei o que ela estava lendo. Ela levantou a cabeça. Não riu. Não é legal – disse – eu estudo cinema. Parecia legal – explicou – mas toda teoria é uma chateação. Teoria dá câncer. O resultado fica até bonitinho, aí vai, mas é um saco fazer cinema. Marisa era assim, a gente dava atenção, abria cortina, ela falava sem parar. Naquela tarde mesmo fomos parar num boteco e ela me derrotou duas vezes na sinuca, enquanto destrinchou toda sua vida para dentro de meus ouvidos comendo um hambúrguer no tal restaurante de teto de vidro. Toda vida para dentro dos ouvidos, e dos ouvidos, sem digestão, direto para o meu peito e meu estômago, que passaram a doer eternamente todas as vezes que eu pensava nela. Ao fim daquele dia, que virou tarde, e logo virou noite, levei-a para o meu apartamento, como se eu fosse um grande homem comedor, e de fato, eu era mais mocinha indefesa do que ela. Fui aprendendo.
Marisa era a repetição avassaladora de clichês – óculos escuros de noite e o drama da unha pintada de vermelho; ela pintava hoje e três dias depois, já descascando, roída e impaciente e comprava por um e noventa e nove outro tom de vermelho muito semelhante ao anterior e repintava as unhas enquanto ouvia música pelos fones no volume máximo e cantava baixinho junto, desafinada e irritante. Marisa infestou meu apartamento com os vidrinhos daqueles esmaltes vermelhos, eles aguardam uma dispensa endurecidos na pia do meu banheiro. A vida dela era uma baldeação contínua e o mundo seria sempre um lugar pior todas as vezes que ela perdesse na sinuca.
Marisa foi e, exaustivamente previsível falou que não dava mais. Me deixou com uma nota de cinco e o resto do maço de cigarros – dois últimos, úmidos, que fumei chorando. Duas semanas depois, dentro do metrô, eu procurava minha carteira e encontrei por acidente a maçã verde enrolada em papel filme numa das bolsas que eu lhe havia emprestado e ela devolvera pela separação. E só. Depois daquela tarde passei a apenas procurar desesperadamente por Marisa nas mulheres e nos homens, não importava sexo ou idade, ou as intenções, eu tinha que encontrar Marisa em alguém. Hoje em dia ainda freqüento com assiduidade festivais de cinema, querendo ver meu nome em branco no canto da tela preta, assim que a história acaba e se iniciam os créditos, num filme sobre lésbicas onde há um primeiro encontro do metrô. Ela vai ver. Vou pôr nos postes. No verso dos maços de cigarros. Vou fazer armadilha de rato com maçã verde dentro. Vou dar recompensa.
Eu preciso, desesperadamente, de um desabamento qualquer que me abrigue.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

drástico

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O seu tio se matou num desses dias densos que nublam a cabeça do mundo. Pela manhã, caiu uma chuva fina, e essa chuva continuou caindo naquela intensidade egoísta e melada, que arrepia os cabelos das mocinhas e faz com que nós precisemos do uso intenso e recluso de casacos, sapatos fechados e guarda-chuva. Esse frio malvado de novembro que faz esquecer quão perto o verão está e joga na nossa cara quão cansados estamos. Depois das cinco da tarde, a chuva engrossou muito, transformando-se naquela ruína de destelhar casas e arrancar membros de árvores. Entre essas duas chuvas, houve um intervalo de meia hora em que tudo cessou, e um pedacinho do sol ameaçou aparecer no céu esbranquiçado. Exatamente nesta pausa, o seu tio preferido levou o revólver do seu avô até a parte da frente da Igreja da Boa Viagem e atirou no céu da boca. A chuva recomeçou logo depois do tiro, quando as pessoas enxergaram a morte e providenciaram logo sua ocultação. A chuva caiu forte sobre o tecido que haviam providenciado para cobrir o cadáver, e a chuva escorreu o sangue e a massa encefálica que atingiram a parte de fora da igreja. Encontraram um telefone dentro da carteira dele e ligaram – era a casa da sua avó, aquela que gostava de andar sem roupa no apartamento em São Paulo, que te levava de manhã pela mão através da cidade nas suas férias de janeiro e comprava churrasquinho grego e aquele jornal tosco, sensacionalista, encharcado de sangue, o Notícias Populares, você ainda tem saudade dela quando vê por acaso numa banca de revista. Do enterro, você não se lembra muito, mas recorda que estava chovendo e que duas tias vestidas de cores escuras guiaram uma de cada lado sua avó, de vestido vermelho sob uma sombrinha verde através do cemitério. Neste dia, no meio daquela tempestade que atrapalhou a noite da sua família, quando você já tinha três mil setecentos e trinta e sete dias de vida, exatamente neste dia, eu nasci.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Underwood 298 + I Prêmio Araucária de Literatura

(Ontem cheguei em casa meio bêbada de cervejas Malettianas e fui olhar meu e-mail, e, tcharaaam, esse conto ficou em segundo lugar na categoria Conto do I Prêmio Araucária! A mulherada arrasou dessa vez. Não gosto de postar textos muito longos nesse blog, mas vai esse aqui, por que quando reconhecem o filho da gente, a gente fica muito muito muito feliz.)

UNDERWOOD 298
(para William Bernal Lima)


Olha da janela do quarto, vê, pensa, peteleco na guimba de cigarro arremessa pra cair lá embaixo, fica presa naquele platô entre o primeiro andar, o térreo e a calçada. Janelinhas acesas por aí, tem uma televisão ligada nas que piscam, azul, verde, vermelho, quando não faz esse calorão, tem cortina fechada. O que assistem - o jornal com a contagem dos mortos, uma novelinha com as vidas que eles acham que ainda vão ter, desejo açucarado. Acende um novo último cigarro do maço. Dedo amarelo. A mãe advertia, o tabaco, a bebida, a tristeza – além de outras coisas que ela não vai mencionar, demais para um corpo como o de qualquer garoto de, por aí, dezoitodezenovevinte anos, talvez um pouco mais. Olho claro, sarda no rosto de uns dias ensolarados que ardem até hoje quando lembra, o caráter sempre sucumbe.
Ele olha, vê e pensa. No andar de baixo, na varanda, jovens homens jogam cartas, tomam cerveja e comem sushi de supermercado. Devem ter no máximo trinta anos. Se tivessem mais que isso não haveria sushi sobre a mesa mas sim alguma aposta. Os jovens não apostam nada de verdade. Com toda essa coisa da camada de ozônio não há como apostar, tu viu? Aquele carinha morreu de ataque cardíaco, cocaína, carro passou por cima. Manual de instruções. Porra, pior que hoje deve ser sexta, com todos esses carros, esse barulho, essas luzes acendendo. Deveria sair, vestiu um jeans, foi levando um agasalho, menos para o corpo e mais para o coração, a mãe ia dizer pra levar um agasalho, era pra não ouvir nada a obediência prévia. Já comeu? Tá levando dinheiro? Volta tarde não, heim? Deixou-a para trás com novelas e casos e revistas e vassouras. Desce os catorze lances pela escada, falta de paciência pra elevador falido, não dá pra ficar esperando, a vida é curta hoje em dia, dura pouco mais de cem anos. Vai ficar sem seu pedaço se esperar de bunda mole a vizinha do quinto despedir do namorado, aquele bosta, segurando a porta emperrando todo mundo.
Dá tchau pro porteiro, ia fazer uma comentário sobre o Corinthians, mas não teve jogo ontem nem anteontem, sei lá, não valia a pena. Prédio falido. Vão demitir o cara essa semana, olha que merda. Ele vai andando, sabe que os amigos vão estar sempre no pior bar da cidade, vai encher tanto depois das nove. Talvez a Bia esteja lá. Todo aquele cabelo loiro e comprido e cacheado, aqueles olhos pretos firmes onde ele se perdia noite após noite, após orgasmo, após café e filme e bar e cigarro. Sim, sempre retornamos ao início, o cigarro. Entra num lugar qualquer, não sabe se é boteco lanchonete padaria farmácia pub irlandês, compra um maço, tira o plástico. Põe um atrás da orelha, guarda o resto no bolso da calça, vai andando, vai andando. Bia, a Bia, Beatriz tinha aquela tatuagem inacabada nas costas – tava trabalhando numa locadora pra juntar as trezentas pilas pra terminar aquele sofrimento. Uma amiga deles que tinha feito o desenho. Eram asas, enormes, partindo das escápulas até aqueles dois furinhos lindos acima da bunda. Que bunda linda, branquinha nuvem de abril, meter a cara ali, dormir ali. Beatriz era toda branca e lisa e linda. Beatriz, que um dia fora sua e agora só restava uma jarra vazia cheinha de rancor. Olha como agora as lembranças boas amargavam com a passagem do tempo. Não sabia se de saudade ou de raiva mesmo, de quando Beatriz se foi e cuspiu aquelas palavras horríveis na cara dele. Eu nunca te amei, nunca senti tesão por você, nunca isso, nunca aquilo. Ele fora o primeiro homem da vida dela, primeiríssimo; mas jamais único. Imbecil.
Desceu uma rua e depois desceu outra. Queria saber que horas eram, mas não havia relógio algum e ele não queria perguntar para as pessoas que responderiam de má vontade, péssima fé, amargas feito aquele gosto na boca dele de quem não come nada descente desde o almoço da terça-feira passada. Ia a caminho quando topou com um amigo. Numa sacola de supermercado, ele estava levando doze cervejas embaladinhas, enfileiradinhas, obedientes. Cumprimento. Disse que tava indo na casa de um outro lá que ele nem se lembrava de conhecer.
“Vai uma latinha? Tá quente, mas...”
Sacola cinza reforçada.
“Não, valeu, velho. O que vocês vão fazer?”
“Ah. O mesmo de sempre. Reuniãozinha com os amigos, ver uns filmes. Beber.”
Tá foda, encontrar amigos na rua, eles sempre se lembram do que eu esqueci, depois de semana passada à noite. Tá foda.
Chegando ao famoso bar, sentou-se sozinho. Ninguém conhecido. É. Talvez não fosse sexta. Domingo, no máximo, depressão – o caminhão de lixo não passou. Pediu uma cerveja.
As pessoas passavam. Gente é feita pra passar, pra ir e vir da sua vida por que no fim, no fim de tudo, você vai morrer e ficar sozinho e ir para algum lugar que ninguém sabe onde é. Um lugar que ninguém sabe se existe. E eles crêem que existe, assistindo jornal, vendo novela, enterrando. Ele preferia não crer em nada para não se machucar depois com a descoberta duradoura do vazio. As garotas olhavam para ele, mas ele preferia não olhar. Enjôo. Ia acabar como Beatriz acabou e como todas as outras acabaram. Um beijo molhado e bêbado. Dois corpos. E depois cobranças semanais e brigas e fins sem justificativa. Roupa de corpo. O mundo era cheio de fim, mas também era cheio de recomeço. Ficar ali, tapando o poço pelo fundo, saber que mais que aquilo ele não poderia se afundar.
Aos poucos, enche a cara e tudo vai se tornando mutável e belo. Cerveja sozinho entrecortada de pinga embebeda mais. Sem pedir permissão, se senta junto a ele um homem que lhe conta a história de sua vida. Olham-se nos olhos, é um senhor, tem uns cinqüenta anos – ou mais. A noite escurece. Ele ri, sem saber do que está rindo. O homem coloca a mão em sua coxa e o assusta. Sai que eu não sou desses! O outro oferece dinheiro e ele não aceita. O homem bate na mesa e grita, mas ele não pode ouvir. Ele não consegue entender o que diz. Esvazia a carteira para a conta e sai correndo, dignidade de michê. O homem fica. Mas quanto a ele, onde está? Perdido. Perder-se podia ser bom, encontrar-se era melhor naquele passo da noite, mas era muito raro. Andou e andou e andou. Não havia dinheiro para mais cigarros, maço inteiro em poucas horas, porra. Ele sentia seu corpo ficando podre como fruta há dias na cozinha sem sinal de alguém pra devorar. Espere mais um pouco. Mais um pouco. Chegou em casa quando quase amanhecia, chorou por quinze minutos e adormeceu até meio-dia.



Quando sonhava e se sonhava era com Beatriz, o sorriso de Beatriz, a bunda de Beatriz, as marcas do corpo dela. As covinhas, as cicatrizes, o cheiro. Pecado mortal ter aquele doce, feito baunilha ou dama da noite ou jasmim, flor, desses cheiros fortíssimos que te deixam enjoado e feliz, veio da casa de alguma avó na infância, num passeio numa praça a noite, passado. Ser feliz é perigoso, você se acostuma.
Ele se levantou e a mãe brigou por que ele estava sem camisa naquele frio e ele poderia se gripar. Chovera das três da manhã até aquela hora da tarde. Que frio era aquele, de repente assim, sem ser inverno nem nada? Pois é, acho que o mundo ta acabando mesmo, ozônio, noticiário, novela. Ele bebe vinte e dois copos de água e come pão seco. O que foi, menino, ta fazendo promessa? Come direito. Sem vontade, sem fome. Era a gastrite, que o comia por dentro, acidez alternada com a amargura dos dias sem se alimentar com nada além de um litro e meio de café.
Volta ao quarto e procura os cigarros que ele não comprou ontem. Comprou sim, eu tinha certeza. O que aconteceu? Foi se lembrando aos poucos. Otário, estapeia o próprio rosto. Não tem mais dinheiro na carteira nem mais cigarros para fumar. O que fazer agora? A mãe já esvaziou o cinzeiro e o quarto está limpo. Sua mente está cheia de escuro e asco. Quer ficar sozinho. Fecha a porta, lê um livro excelente, dá duas voltas na sala. Inquieto, não sabe o que fazer. Da janela vê o resto da festa dos homens de ontem. Que dia mais triste – é segunda, terça-feira? Todos estão descansando trabalhando comendo existindo e meu cérebro não pára de pensar de pensar de pensar de pensar de.



Visitar o avô no hospital. Todos sabem que ele já está partindo, mas mesmo assim insistem em recomendar dizer que tá melhorando se despedir. Por não querer dizer adeus, compra as margaridas mais bonitas que se pode encontrar num dia cinza úmido bolorento antigo daqueles. Vai caminhando, os tênis machucam. A mãe lhe oferece um novo par, mas ele não quer, ele não aceita. Vai usar aqueles sapatos velhos até nunca mais. Barra de calça desmanchando, puído, descosturado, boneca de pano com o recheio saindo, ninguém entendia.
O hospital era um lugar infértil e ele gostava de lá por isso. Ali, não havia idéias, namoradas ou cigarros, jornal, novela, ozônio, havia apenas o silêncio, branco e profundo, que ele tanto desejava. Andou pelos corredores com as margaridas nas mãos. Estava ansioso para ver o avô, descendência italiana, perguntar se melhorara. Sabia que a resposta ia ser para sempre sim, mesmo com a piora das dores e com a maior dificuldade para se respirar. Otimista, bateu e abriu a porta do apartamento e se deparou com o vazio. Uma jovem enfermeira retirava os lençóis usados.
Pois não? Ela perguntou, doce. Ele falou que precisava do avô. A moça deu um sorriso apertado e falou gentilmente que o homem que habitava aquele quarto acabara de falecer. Perguntou se ele era da família, estavam todos por lá. Ele agradeceu e saiu segurando as lágrimas e os dentes. Tapar o fundo de lama do poço, não havia mais nada a se sentir. Mordia a língua e se arranhava por dentro felino para não gritar.
Passou pelas mesmas ruas e seus pés doeram mais ainda. Ele apertou o buquê. Como as flores podiam sorrir numa situação daquelas? Margaridas: Miolos amarelos e pétalas brancas. Lembravam-lhe o cabelo e a pele de Beatriz. A aflição crescia e ele não podia chorar. Está proibido de sentir. Subiu para o quarto, fechou-se e se empenhou em despetalar as flores, uma a uma, formando um belo montinho branco no chão. Aquilo novamente lhe lembrava Beatriz. O cheiro das margaridas agora era seu. Que bom. Pelo menos ele ainda tinha alguma coisa.



Pois é, você disse que me viu outro dia, subindo a Augusta, eu tava usando um vestido, você tava bêbado, e quando ela chegou perto, nem era eu. Não era eu, não. Mas acho que eu te vi também, noutros outros dias. Te encontrei várias vezes no metrô de Viena, por acaso, um abraço e te ligo mais tarde . Não estava em lugar algum. Te deixei tantas várias vezes sentado naquele bar com a conta após desentendimentos políticos fóbicos amorosos literatomusicais, ou ivernos, por debaixo. Ou te achei esquecido nos bolsos dos casacos depois de um verão inteiro ou numa pedra solta, na qual de repente tropecei e machuquei o pé, não havia nada sob ela. Esperando nos consultórios dos dentistas. Marcando um encontro perto daquele monumento naquela praça perto daquela árvore junto a tal estação. Ou bêbado, desolado, me abraçando pela cintura por não conseguir se levantar. Passeando com o cachorro, vestido numa calça velhinha de pijama, debruçado sobre a avenida. Jogando as flores no chão, me esperando naquele small café em Berlim (Lou nos falou dele, Lou estava certo e nós estávamos completamente errados), o isqueiro, o maço sobre o livro fechado, o meu tempo inconsciente. Eu vim aqui e olhei. Contei cada achado e perdido do inventário do seu morto.



Do quarto de despejo, a mãe retirava antigos bens de seu avô morto. Roupas, livros de Direito, cadernos ilegíveis, caixas. Curioso, ele mexia nas antiguidades. Sai daí, menino, tem muita poeira, você sabe como são os seus pulmões, vai ter crise asmática de novo. Asma não vinha pra cá desde os nove anos. Ele sabia. Ia se retirando quando viu um enorme objeto preto. Não, preto não era. Era azul marinho, azul petróleo, bem fundo e distante. Retirou-o da imunda pilha de coisas e não pôde acreditar na máquina de escrever que encontrara. Dessas antigas, grandes, paradas já há anos. Será que ainda funciona? Perguntou à mãe. Não sei, ela respondeu, por que você não experimenta? Ele testou todas as teclas, uma por uma e todas as letrinhas estavam por lá, algumas travadas. Limpou-as com algodão. Por algum motivo, não havia mais tinta. É que tá sem fita, filho, ela disse. Sim, aquela fita que você coloca para escrever. Correu até a papelaria e comprou-a com seus últimos trocados que em outras épocas serviriam para amarelar os dedos renovar mágoas com a euforia do dia anterior.
Demorou meia hora para conseguir encaixar a fita na máquina. Quando tudo estava bem e os seus dedos estavam imundos de tinta, ele se lavou e se sentou para escrever. Mas escrever o que? Primeiramente Beatriz. Escreveu Beatriz todinha no papel em branco. Quando ela já estava pronta, colocou-a numa pasta e escreveu a história do avô, das tias, da mãe. Escreveu a história do homem no bar com a mão em sua coxa e escreveu a história dos sushis dos rapazes do andar de baixo. Escreveu das margaridas e do frio.
Os papéis não mais brancos se empilhavam sobre a mesa e os inválidos eram rasgados e jogados no lixo. Que fúria rasgar papel. Os dias se passaram e a pilha letrinhas foi aumentando. Pensou na torre de babel, grossa e herege.
A mãe levava leite morno para que ele não parasse de escrever. O que esse menino tanto escreve, meu Deus? Mais café. Ele continuou e continuava. Tudo fluía, caudaloso rio. Fazia um sentido maior que a vida. Era aquela a razão para a sua estadia naquele planeta tão cheio de novela, noticiário, ozônio, cerveja, amarelo? Não sabia. Só sabia que as histórias o viciavam.
Depois de quarenta dias e quarenta noites no mar e no deserto, ele parou e se levantou para descansar. O corpo doía, mas havia o orgulho por sua obra. Era o seu universo. Parou diante da janela e não viu mais as pessoas. Enxergou apenas o céu doloroso cheio de cinza. Colocou a mão para fora e recebeu, gentilmente, as primeiras gotas de chuva.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

dezembro

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Estávamos andando lado a lado, e dessa vez a chuva era tão fina que nem precisar abrir o guarda chuva nós precisamos. Meu olho procurou o seu, você interrompia a frase todas as vezes que eu te olhava por muito tempo para recomeçar sete ou oito segundos depois, quando o sinal abria e nós podíamos atravessar. Gaguejava. Falou a mesma coisa da minha irmã, duas vezes. As casas, deste, do outro lado da rua, eram antigas, algumas estavam abandonadas, e dessa vez eu te interrompi falando dos ladrilhos xadrez de vermelho e branco no chão que aos poucos ia sendo consumido por um mato injusto que crescia no jardim esquecido. As casas, suas varandas, seus cortejos. Pensei na cintura alta das saias das moças e do tecido dos vestidos, e dos presentes de casamento. Eu e você, nossas alminhas velhas, nossos gostos pela memória, pela delicadeza. Eu disse, que lugar longe para estacionar um carro, você disse, se eu fosse estacionar mais perto teria que ir até o centro e voltar, mãos únicas, mudanças de sentido. Mas não foi uma reclamação. Não entendeu. Eu estava gostando daquela caminhada, daquelas casas. Quanto tempo nós temos? Você perguntou, eram sete horas da noite – na verdade, tarde, por que o dia ainda estava claro ao modo da chuva. Você disse que queria me mostrar as suas casas preferidas no seu bairro. Verão aos vinte graus, dias e dias daquela precipitação inocente. Eu estava morrendo de frio nas pernas, apesar da meia, dos sapatos, o erro de um vestido e de um casaco fino demais para passar o dia todo fora com você. Parecia com alguma das histórias que eu tinha escrito no estúdio, eu queria ter mencionado, em algum dos meus cadernos. Na minha casa, uma prateleira deles, ou mais. Vinte anos de esboços, almejo te ver imaginando. Tenho medo de que os esboços caiam nos seus dedos, ou coisa parecida, mãos bonitas folheando meu passado. Garatujas. Você abre a porta e entra, abre minha porta por dentro pra eu entrar. Eu entro. Você vai ligar o carro, fazer alguma coisa assim, nos próximos quinze minutos, você pretendia me mostrar as casas, então eu vou, eu me inclino, toco sua barba, e você vem de repente e me dá um beijo atemporal. Um carro antigo, numa tarde antiga, num bairro antigo, eu já não posso mais dizer em que ano estamos, que idade temos, o quão nosso gesto parece ser proibido e livre ao mesmo tempo, as gotas da chuva engrossam e começam a descer no pára-brisa que aos poucos se molha por fora e se embaça. Minutos antes estávamos olhando pelos vidros da sala, a gente olhou como a chuva deixava tudo mais real lá fora, parecia uma fotografia; a constatação foi sua. Quando eu começar a perder a memória de novo, você repetirá esse caminho, repetirá suas falas para que eu repita as minhas em seguida, repetirá cada gesto e repetirá um beijo complacente para mim.

sábado, 5 de dezembro de 2009

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...mas quando é que nós vamos começar a nos destruir de novo?

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

nunca

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Tem a mariposa aqui até agora. Ela tá aqui comigo desde quando escureceu. Ela assistiu minha noite inútil, ela sabe que eu não fiz nada. Não conversei com ninguém. Não li. Fiquei ouvindo chuva, carro na rua, fala de vizinho. Ouvi as mensagens de voz ecoando da sala para cá, quando eu não atendi ao telefone; uma perguntava se tava tudo bem, outra cobrava um projeto, outra queria desmarcar um encontro triste e inútil, o quarto dizia saudade. Fui deitar cedo, olhei pela janela, a cidade já estava meio apagada. No escuro, o pessoal acendeu as luzes, e uma neblina ficou suspensa em cima dos prédios. Depois as luzes se apagaram aos poucos. Ela continua aqui, é uma condenação. Ou você atura uma mariposa, incomodado pelas asas batendo nas paredes, ou você a mata e convive pesaroso com a morte dela. Grudou na minha janela, vai escalando patinha por patinha, e ao voar se depara com o vidro de novo. Retardada. Tiro o chinelo, ergo na altura dos ombros, ela voa para a luz e cai no chão. Está bem perto de mim agora. Eu não consigo me decidir.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

paraíso pompéia saudade

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Eu me lembro de ter escutado as coisas que você falou do pai, meio sem consolo, meio puto, talvez, não sei, você fala do fígado dele, alcoolismo, você não fala o nome dele de novo. Você não quer continuar o assunto. Nós estamos assustados. Descubro por minha conta. Escuta. Mudamos o objeto da conversa, não sei muito bem onde ela morreu. Não conversávamos de perto, como antes, mas estávamos com um bom humor cansado - a minha dor de cabeça passou em vinte segundos, depois que eu deitei a cabeça no seu ombro e fechei os olhos, acredita? - cansado de um dia longo e produtivo. Eu trabalhei a tarde toda numas idéias, você ensaiou com os meninos. Não queremos ainda voltar para casa. Sinto que você sabe de mais coisas do que eu. Tenho um vislumbre do futuro, não sei se é verdade. Você me liga. Você fala. Eu não sei muito bem, me conta algo urgente. Está chovendo. Eu me visto depressa, está frio, enrolo qualquer coisa no pescoço, vai uma jaqueta sobre os braços, de qualquer jeito. Entro no carro, bato a porta com força. Dirijo. Tem aquela placa que eu gosto: paraíso pompéia saudade. Eu estranho os nomes para a funcionalidade, mas tão poéticamente colocados. Nós nos encontramos. Você fala, você está arrasado por algum motivo. Fim. Até aí que vai minha imaginação para alguma cena que possa acontecer. Meus dedos estão sujos de tinta. Tenho agora outra visão. Entro em um quarto da casa antiga. A casa cheia de um cadáver ruim, enterrado sob alguma tábua, ocupa cômodo a cômodo com seu espírito de relógio pesado. Tenho de novo outro daqueles sonhos recorrentes, dessa vez o aquário com os peixes. Eu já te contei? Então, ele é assim, meio azul. O medo se esvai pelos meus joelhos, o medo se esvai pela sua boca. Você é um dia ameno, despretensioso e feliz, para onde tende a minha ternura.

(para Fabrício.)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

de um tumulto



Uma pessoa perdida que me disse que a ônix é uma pedra que suga todas as energias negativas de um local. O fundo do olho preto similar, estou cega, conduz minha cegueira, todas nós somos cegas, conduz essa cegueira, todos os dias você tendendo ao azul, o dia ficava azul por sua causa, com o tempo passando mania de vir e pedir pra eu cortar os cabelos, ou deixá-los crescendo, roupa na varanda, não dá pra ver nada, iminência, ainda acho que tem a ver com mar ou desertos, com pés nus em qualquer lugar, se parece com algo meu, algo que se partiu e eu nunca mais tive vontade de ter, veio dos grandes-desertos que há entre duas pessoas. Me contou coisas que não contou a ninguém. Sorri o tempo todo e se abraça às mulheres. Dança com elas. São suas cordas, enforcado. Não o vejo por dentro, nem imagino, nem quero. Quero sorrir, costume, ou um menino magrelo de joelho ralado, ou o pequeno, o menorzinho, que chorava muito. Chorava muito chovia muito. Da primeira vez que se estendeu a mim perguntou meu nome, ele inventou outro nome para mim, não faz parte, fez uma grande parte, te ligar chorando no meio da noite, não fala minha língua, eu não queria mais dançar, o que há de pele há sinceridade não justifica nada, apenas dirige. Posso colocar numa lista os fôlegos, puxadas breves de ar entre uma cerveja e outra. Me importa esse tipo de teatro, caneta deslizando sua história no papel, sensibilidade trancada na garganta, nenhuma cicatriz no corpo inteiro. Não: algumas leves, nunca sei como vai responder, sem más intenções apenas uma persistência que me dói, uma capacidade de aprender inesgotável,
um perfume que não se parece com ele.
Essa gente aqui agora, se dissolve no fluxo do ar.
Há dez pessoas,
Há duas pessoas,
não,
agora uma,
agora você,
e depois ninguém.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

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Quando ele morreu aidético e vão em 1989 eu e meus pais já havíamos voltado para o Brasil - eu não o vi morto, nem pude visitar seu túmulo. Em Nova Iorque, quando o mundo deixava os piores noventa anos de sua existência, dita contemporânea feliz vanguardista desenvolvida, enquanto ainda estamos atolados nas idéias de sucesso medievais e cristãs, minha mãe me colocava num vestido rosa de lã rosa, com meias escuras e grossas e sapatinhos, com o cabelo curto bem penteado. Eu tinha cinco anos. Era outono e cada um de nós sabia que ele não ultrapassaria o inverno. Os dias eram cinzas, marrons, alaranjados, um de cada vez e cada vez mais, as cortinas do apartamento de tijolinho eram azuis, e o ar ali dentro tudo era muito perfumado. Consigo sentir o perfume até hoje; quando me arrumavam para ir para lá eu ficava feliz por que ia ver aquele cara magro morando num lugar bonito e cheiroso, eu era a felicidade de um sempre recluso na mesma cama triste. Acho que eu achei que ele ia melhorar, até certo ponto, quando me disseram que não. Uma doença ruim, mas muito difícil de uma criança pegar, minha mãe dizia ao meu medo, e todo mundo ficou preocupado por eu saber (tão rápido e tão nova) que em menos de cem anos eu ia deixar de existir.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

poseidon



Você sente o cheiro do mar lá fora como se fosse uma pessoa. De fato, partir depois de tanto tempo aqui é como um divórcio – e seus enjôos. Eles arrastam as malas pela areia até o barco. São oito da manhã e tudo está quente demais, e de novo. Voltar para onde não há mais o desleixo da praia, doença da maresia entrando dentro da casa e consumindo os nossos pertences e nossas dignidades. Tinham razão em chamá-lo de Netuno, Netuno como um deus e como um corpo onipresente no céu refazendo os dias a seu ver. Sim, pois de fato ele entrou na minha casa, mudou a minha vida, envelheceu os meus dedos, umedeceu minhas noites. Caminho sobre seus territórios de novo, massa de água sólida e azul. Me despeço com a devolução de uma concha, e uma promessa de volta.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

1991

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Todas as vezes em que eu começava a buscar lugares diferentes, pessoas diferentes, eles me impediam falando de suas palavras - o menor era a religião negra a qual nos entregávamos através dos anos frios, muito mais era o meio recluso no qual vivíamos, minha mãe queria a minha segurança (o mundo é mau), meu sufocamento, o meu pai já habitava aquilo. Está bem aqui a imagem recorrente do passado: estou sentada no banco de trás do carro, papai dirige, minha mãe está ao lado – os dois estão em silêncio e o rádio está funcionando num volume tão baixo que ninguém escuta nada de verdade. Faz frio, está nublado e escurece mais cedo que o normal. Aliás, a tarde toda, depois da uma e meia, é um longo e lento escurecer. Tenho dezesseis anos ou um pouco mais que isso. O ar que entra pela janela aberta tem o cheiro das árvores lá fora, eu sinto que a terra está úmida como se ela fosse um bicho que habita todos os lugares. O corpo que temos é do mundo, minha mãe dizia. Não é nosso, nem de Deus, nem do inferno, é da terra, apenas a terra, que nos serve e nos consome. Eles estão me levando para conhecer um jovem rapaz com o qual no futuro eu vou me casar. Trocamos cartas. Ele copiava trechos bíblicos para mim e me fazia perguntas. Perguntava sobre os meus gostos. Ler, respondi, ver filmes. Gosto de cozinhar também, minha irmã gosta dos doces que eu faço. Na sala da casa dele, os sofás estampados, o papel de parede listrado com duas cores claras imperceptíveis como o som no carro. Ele toca uma música para mim, meus pais, os pais dele, olham orgulhosos, que eu me apaixone e aceite o mecanismo complexo da música, era o meu destino casar com um rapaz daqueles, cabelo escuro, tão jovem quanto eu. Eu reparo em tudo, no cheiro das flores, no gosto do café, na raiz escura da cabeça loira da mãe dele: está caindo. Sinto vontade de tirar os sapatos, mas me comporto. De dentro do carro, antes daquele encontro, me lembro de sentir a coisa fria depois quente depois fria de novo dentro de mim, e fico dois segundos sem respirar. Minha mãe não sabe dos dias livres do fim de semana, minha janela do primeiro andar, eu e as meninas pulamos janelas, saímos, bebemos, ficamos até tarde na rua, acordamos aos risos e olheiras. Não sei o que é, não tem nome, nunca nos falaram, mas está lá, eu sei que está lá, olhando para mim, mora no horror.

sábado, 21 de novembro de 2009

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Naquele verão, nos trinta dias que durou a viagem, usei o mesmo vestido bege drapeado cerca de vinte vezes. Ainda hoje, quando eu coloco esse vestido, minha mãe ameaça desmaiar. Eu o lavava no banho, ou no tanque no fundo da casa, quando ele ficava sujo de poeira e barro, e então dependurava no varal de arame esticado rente à parede, com todos aqueles biquínis, toalhas e roupas molhadas. Ele ficava ali, silencioso e tentador, secando. Era bom – leve, de linho, não pesava nos ombros vermelhos queimados ardidos de sol. Ao fim daquele mês, a barra descosturou, mas eu não quis jogar fora. Está dependurado ali no quintal. Praia com a família, que longe todos eles estão, cachorro rondando, primo catarrento querendo brincar. Arranhões nas pernas que deixavam tais brincadeiras com os primos, a areias e os cães, ou até o sol que a gente tentava alcançar quando se arrastava no chão, deixavam também hematomas pequenos nas pernas – joelhos e tornozelos – que ardiam tanto quando a gente entrava e reentrava no mar.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Hilda (dias amenos)

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Está bem aqui o que foi o desejo (hoje murcho) – foi buraco, abismo, ausência, mãos conduzindo o vácuo, desrespeito dos sentidos, perda dos olhos, sufocamento da fala e do tato. Aqui está o que foi o desejo: A questão de saber quem ele é, os nomes que lhe damos, pra onde se desenvolve. Não vai. Desejo mora no excesso, mora na magreza miserável do tato, pecado mesquinho e idoso. Agoniza, bicho sedado no meio do mato, o tornozelo quebrado da vítima. Desejo é o nome da parede onde eu escrevo seu nome de novo.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

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Foi quando os ratinhos mortos começaram a aparecer: vinham um tanto maltradados, na cozinha, duros; e pelo tamanho ainda deviam ser filhotes, ou no máximo adolescentes. Apareciam de manhã, ou à tarde, depois de quando eu me ausentava e em seguida chegava no meu exausto horário marcado de voltar pra casa. Eu não os via vivos em nenhum corredor ou buraco do meu apartamento, eles apenas apareciam mortos, unicamente mortos, como se atingissem minha cozinha só para morrer - e neste assassínio através do meu veneno, eles me buscavam, como um afogado que sai pela praia depois de tanto mar, respira duas vezes e acaba como um alívio olhando fixamente para o oceano bonito que percorreram, logo depois de perceber a enorme inundação que possui por dentro.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

do resto de ontem

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"Deixei pra você alguns poemas que sobraram", disse, pelo telefone, como se não estivesse se referindo a um caderno de poemas (algumas de suas páginas arrancadas, outras soltas de outros cadernos), mas como se falasse de maçãs, ervilhas, roupas, vinho, lenços ou outros objetos que de fato podem sobrar. Quando algo sobra, sobra de onde, ou do quê. Um livro de poemas, que publicaria, deixou para mim na gaveta do quarto tudo que não se encaixou, tudo que me pertencia, antes de voltar pr'o Recife e seus dias suados. "Eu vou pegar pra mim o que você perdeu", ele escrevera nas páginas gastas, com resto de digital na tinta da caneta que estourou e o cafézinho da tarde, "e ficar para mim". "Eu vou cuidar do que você abandonou", continuava noutra linha. Falava do reflexo arco-íris de sol na bolha de sabão das crianças naquela tarde que custava a entardecer (novembro), do cheiro de peixe assando (domingo), duma planta que morreu. Chamou os dias de resplandecentes. Das noites estranhas, que nem tinham direito cara de noite, dizia que era buraco de fechadura, prodígio do corpo, que morava tanto nos sulcos das digitais dos dedos quanto nos túneis negros dos olhos.

sábado, 14 de novembro de 2009

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Marina encontra o melhor conforto nas listas de coisas para fazer. Essa lista imperativa (porém com seus verbos sempre infinitivos - fazer trabalhos, comprar maçãs, hidratante, xampu, bombril; devolver os livros na biblioteca, ir a tal lugar, marcar dentista, ligar para fulaninha que hoje é aniversário dela)a organiza de volta para a realidade, o tempo de uma semana sem distrações. Meu Deus, já é novembro, Anna diz noutra de suas terças-feiras enjoadas, passando pela vitrine verde e vermelha, cheia de neve falsa do natal. Calor absurdo, chuvas irritantes, na fila do bandejão o Érico diz que se sente como um saquinho de chá colocado na água fervendo. Foi ele quem ensinou Marina a colocar o cê cedilha com o teclado americano do laptop e no fim da sua lista de coisas para fazer (estamos todos fodidos & juntos nessa), colocou a palavra DORMIR em caixa alta, seguida de um ponto final. A chuva começa (assim que Marina desce do ônibus, querido Murphy), corre para dentro do prédio - já se encharcando - e sobe todos os andares à pé (a luz acabou, querido Murphy). Lá em cima, suada, se encaminha para aquele platô suicida, cinza e vazio, inundado de água que dilui o cocô dos pombos e a fuligem. A chuva molha Marina, e consequentemente a lista deixada no bolso de trás dos jeans, dissolvendo tarefas como lavar roupa e cortar o cabelo. O prazer de se matar jamais seria o mesmo que aquele de riscar com uma caneta de cor diferente qualquer um daqueles afazeres verbalizados. Marina, com o cheiro ácido da chuva, desce dali e se senta na escrivaninha para compor mais uma lista

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

expectativas

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Antes de meter o pé no cimento do exílio, vou enumerar novamente os dias; falta quanto?, e vou anotar em algum lugar. Aqui, tem trator lá fora destruindo o mundo, sirene, dilúvio bíblico. Em breve, vou me esquecer de novo no ponto de ônibus errado, em breve vou voltar a quebrar unhas, de novo, vou fazer tudo para que ocorram choques, olho vazio, falar demais. Vai restar cicatriz no corpo, quem vem me olhar na cara encontra.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

sintomas

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Eu te amo há exatamente trinta e seis dias; o que já faz com que eu perceba que Platão tem falado demais comigo. Em breve, sei que começarei a copiar poemas de amor e guardá-los em caixinhas espalhadas pela casa para que eles não me deixem esquecer nunca. Eu não sei mais me vestir sozinho, eu parei de me olhar no espelho. Você entra na biblioteca carregada de livros, faz alguma piada depois que me ouve reclamar. O nervosismo ou bem faz que eu me cale ou mal faz com que eu fale demais. Eu olho. O meu foco se perde dentro de você. Toque no corpo, desprezo, você diz algo sobre alguém ter gostado de você, um café, outra pausa no dia pautado da lista de coisas para fazer. Você se despede de mim. Não vai olhar para os outros, por favor, dissimulados, eu, sincero, estou aqui. Te ofereço os próximos anos na minha vida. Trinta e seis dias, desbravo, vai desabar, é que nem gravidez diagnosticada em vômito, peitos e urina.

domingo, 1 de novembro de 2009

na pele dos outros {2}

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se bem que o corpo entende cada uma das calamidades de quem o veste.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

moléstias e injúrias {2}

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M.P.L., 19 anos; corte com bisturi aos oito.




A.L, 19 anos; espinha espremida.




L.S., 19 anos; queimaduras de cigarro.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

biografia

naquela árvore, onde enforcaram um homem,
enforcou-se
naquela árvore,
onde enforcaram um homem anos atrás

terça-feira, 27 de outubro de 2009

moléstias e injúrias

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Há duas semanas, indo pegar ônibus.




Há três dias, batendo na parte debaixo da mesa.




Ontem, passando a rodinha da cadeira por cima.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

William diz:
Não te atormenta o fato de ter em mente que voce ira morrer sem ler tudo o que existe por ai?

Laurin. diz:
não. eu leio borges.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

dias amenos #7

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Quando alguma guerra explode ao vivo na tevê, a casa também treme e aos poucos arrebenta enquanto minha rua bairro cidade permanece intacta – é comigo, apenas comigo que as argolas da cortina se soltam e o gesso do teto cai, a fuligem cobre minha cama.
Quando chove lá fora também chove aqui dentro.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

eu:
faz algo romantico pra ela


meu irmão:
Ah, tá. Sei.
Só o que eu faço é ser romantico com aquela porra de menina.
Eu vou é meter nela.

Que frase bonita.
Tá parecendo Bukowski

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Luz Vermelha

Estou em Lima e olho pela janela do quarto de hotel às sete ou oito da noite. Temos cerca de dois metros de altura com seus respectivos dos metros e um pouco mais de cortina. Alguns prédios estranhos se amontoam atrás do prédio baixo da frente, e posso ver muitas janelas, apesar de Lima ser uma cidade reta, plana, terreno abençoado enquanto se amaldiçoa o clima. Trinta e dois anos sem chuva, pues sí, no lo creo, llevan treinta y dos años sin llover. Aqui, acredito que tenha usado roupas pretas demais – ficou na memória, depois de voltar da tradicional e sem fôlego combinação de altitudes exacerbadas estrangeiras, Cuzco y Macchu Picchu, umbigos do mundo, com os joelhos das calças verdes listradas sujos de lama e o coração amaldiçoado. Vi por aquela janela de hotel, ao longe, do outro lado - ali. Dá pra ver? É uma janela vermelha, num prédio alto y gris del barrio Miraflores. Não sei se a luz do cômodo é vermelha, se as janelas são pintadas de um vermelho translúcido que nem de esmalte rebu ou se essa é de novo mais uma daquelas ilusões que nos pregam a memória de viagem. Do outro lado da rua, há um café – Café Love, o batizaram assim, o letreiro é luminoso e do lado de dentro há espelhos correndo pelas paredes rentes às meses. Quando a dor de garganta começou, Dani, Nana e Lu me levaram para um chocolate quente com risadas. Eu as amei, elas jantaram, mas eu não pude engolir meu martírio. Tive medo de não melhorar. De fato, não melhorei, e eu como intérprete prodigiosa de tal língua sacana, fiquei com febre e fiquei de cama, incapaz de boates às quais as meninas se entregaram. Na hora da nossa partida, quando fui arrumar as malas, ardendo no quadragésimo andar da ilusão (sonhei de novo com os incas), liguei a tevê, um tal de Gabo havia morrido e, quando Tracy Chapman começou a cantar copiosa de desejo por uma fuga num carro rápido, eu chorei de novo.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

dias amenos #6

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Amor é hipótese.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

dias amenos #5

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Não me parece justo que alguém tenha vivido e não tenha se tentado matar ao menos uma vez. Essa chance de escape mais cedo. Aborto. Desconfiaça de deus.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

dias amenos #4

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Será que dá pra ver daqui?

A memória é verde, azul, cinzenta, rosada, bege; preto e branco. O primeiro pulo na água, de pé lamento na grama, e então as formigas apareciam subindo em árvores comigo, entre o cheiro de plantas, ou fruta madurando – mas isso era periódico, mês de ano. Há fumaça em algum lugar lá longe, o céu se fecha, vem o primeiro, o segundo trovão,

e chove.

domingo, 4 de outubro de 2009

dias amenos #3

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É, sei da ambição, se bem que estarei satisfeita com um pouquinho; um gole deste copo d’água, um lápis bem apontado, almoço em casa no domingo, quente e bonito com as janelas abertas, uma caneta e sua respectiva tampa.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

dias amenos #2

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Você se lembra daquela foto que tiraram de você no dia que você ia me pedir em casamento? Foi certo, o nervosismo te fez beber demais, e eu adverti, eu disse o que aconteceria. Prodigiosa língua. Você vomitou várias vezes e te levamos para deitar na cama do Marcel, que, também bêbado e hilário, pegou na sua bunda e tirou uma foto sua deitado de lado, semiconsciente e nervoso, você com o dedo do meio levantado. Posteriormente, recebemos a fotografia e ele escreveu atrás "cu de bêbado não tem dono, heim, Théo?". Enquanto você dormia naquela noite, profundo e humilhado, decidi chamar um táxi para nos levar para casa enquanto quase amanhecia e quando peguei o seu casaco, caíram do bolso duas alianças ruidosas no chão de madeira. Dentro da maior, havia meu nome escrito. Guardei-as no lugar. Três dias depois, enquanto o vinil chiava o fim da música (talvez tal barulho me faça manter tão antigo hábito) após apenas um copo de uísque, você se ajoelhou, tão piegas na minha frente, no chão da sala.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

post-it amarelo na sua vida

Fui abraçar Anna e recuei. Ela usa o mesmo shampoo que você, o que faz com que vocês dois tenham o mesmo cheiro bom, mas que passou a ser insuportável por ser o seu cheiro. Fazia tempo que eu não me lembrava de você, e logo percebi que aquele era o início de uma terça-feira. Já te expliquei como as terças-feiras são o pior dia da semana. Se o telefone toca numa terça-feira, é um desses caras do telemarketing querendo vender celular. Numa terça-feira há os piores engarrafamentos, as unhas quebram, esmalte descasca, eu me olho no espelho e me acho horrível. Cabelo embaraçado. Perco minhas coisas favoritas. Tenho prova no dia seguinte. Não sou convidada para uma festa. Fico doente.

sábado, 26 de setembro de 2009

messenger

Laurra. diz:
toda vez que eu escrevo ``mijo`` no word, ele sugere trocar por ``urina``
FNORD! diz:
sério?
e bosta? ele sugere fezes?
Laurra. diz:
nao
ele aceita
cagada ele tb aceita

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

dias amenos #1

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Há um momento em que eu odeio. Théo odeia esse momento – eu quebro. Já desfiz janelas copos já se foram cristaleiras desmanchei o vidro como se ele fosse areia de novo. Areia na pele vira sangue. Depois de tal quebra, há o procedimento são de juntar todos os estilhaços, embalá-los em papel do jornal de anteontem e jogá-los no lixo, em segurança, para que não machuquem nem o lixeiro nem mais ninguém. Eu me recomponho neste trabalho. E então, exausta, sinto as costas doendo e me recosto no sofá enquanto a consciência esvai.


(foto: paleta da Ana Paula, diadesses, no atelier)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Ouviu? Barulho de grito. Vizinho brigando. Tem que fazer muito silêncio para entender o que eles tão falando. Cachorro. Tá ouvindo? Ele fala mais alto. Piranha. Vadia. Sai daqui. VADIA. Nojento. Até começarem a atirar coisas. Daí é onomatopéia atrás de onomatopéia. Quarta-feira passada baixou até polícia, eles nem se separaram, dois dias depois já tão brigando de novo. Porra. Se um cara gritasse assim comigo eu nem ia continuar prestando atenção no que ele estava gritando. Eu ia é ir embora.
desencana

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Nanda

(pro Rafo e pra Nanda, obviamente)

Falou com ela que queria ter um filho com ela, que se não fosse com ela era melhor nem ser, nem envelhecer, nem ter mais vida, e que sabia que tantos homens já haviam pedido aquilo para tantas outras mulheres, no campo da aceitação ou da recusa, as coisas começaram a acontecer. Que tinha sorte nas amizades que carregava pela vida, e que só podia enxergá-la parada de costas perto da cerca, usando vestido e galochas, enquanto no fundo uma mangueira amadurecia seus frutos perfumados; era setembro e cada folha que caía no chão por chuva trovoada granito ou acidente era uma fotografia nova. Ela não entendeu. Pensou que se referia à câmera em cima da mesa, ou ao desespero que não deixava unhas crescerem, patamar além do amor, além de qualquer coisa de passagem de tempo dos mais uns do relógio. Teu, teu medo de perder a juventude, ela disse, ele vinha do mar ancestral onde surgiu a vida de cada peixe ossudo que devoraram num almoço entediante de família (ele tinha quatro irmãos) enquanto ela nascera com o cheiro da terra, a sola das galochas manchadas de vermelho do sangue ferroso do lugar que haviam escolhido para viver para sempre. Para sempre, ela poderia dizer. Aos dezoito, quando ele disse por primeiro de seu medo de envelhecer, seu medo de morte, ela manteve um olhar duro e repressivo que ele pensou ser raiva, mas, posteriormente, desvestindo o avental do laboratório (sujo de água de um aquário cheio de águas vivas), brincou que ela ficava com raiva de qualquer coisa, mas não era. Não era raiva.

Quando tu me disse que tinha medo de envelhecer, eu quase chorei. Ouviu? Eu quase chorei. Não fiquei brava não. É por que eu odeio te ouvir falando do que tu odeia; do que te fere.

Disse que não precisava ser um filho em si, mas eles deveriam ter algo juntos, dum degrau melhor que o amor, que a possessão, que a velhice e a morte que alcança os braços de cada um, e assusta. Daqui a cinqüenta anos, diria, talvez. Daqui a cinqüenta anos, se bater essa tua tristeza de novo. Pensa em mim. E aí tu vai ver que não envelheceu nada. Olha só, pegou a câmera e tirou uma foto – o cabelo dele estava despenteado, telefonema urgente às sete e meia de uma terça-feira dava nisso, pressa, a camisa amarrotada por que o ferro de passar roupa dera um curto-circuito e quando ele ia concertar, simplesmente desaparecera nas entranhas de uma casa onde só moravam estudantes.

Hoje, absolutamente hoje, é eterno, ela disse. Eu guardei. E eu vou mostrar pra todo mundo quando tu tiver muitos anos. E daí a gente vai ver que tu não mudou porra nenhuma, tá ouvindo? A gente não vai ter envelhecido não.
Eu juro, eu prometo.

Pode ouvir ao longe o barulho castanho das galochas sobre as folhas que caíram. Do lado de cá, um cachorro a acompanha.

Gosta dos bichos, como eu.

Vamos adotar outro vira-lata então.

Tá chorando de novo. Ouviu? Chorando de novo.

Que bonita que ela é.

Não chora mais não, Nanda.

sábado, 12 de setembro de 2009

des(ex)istindo

Putz, isso de novo, não vai dar certo não, figurinha repetida não completa álbum, heim? Cala a boca, Anna. E o cara ainda namora. Namorar? Aquele plasma? Velho, ontem a gente tava na casa dele e quando meu irmão perguntou onde é que tava aquela coisa, ele só falou, bah, tá em casa. Dormindo.
Mas eu vi, eu vi, seu ex tava a fim de te pegar horrores, você viu o jeito que ele tava olhando, e como ele ficou tirando foto sua aquela hora? Depois de toda aquela cerveja que eu bebi, nem teve bolas o suficiente pra chegar beijando. Ele tava sóbrio, cara. Sóbrio. Duvidé-ó-dó, que dozinha, todos aqueles cigarros também. Jesus. Puta vontade & puta medo de te beijar. Eles até apostaram. O quê? Apostaram, Alex e Flavinha, se ele ia te beijar meia noite e trinta ou meia noite e quarenta. E quem ganhou? NINGUÉM, PORRA, NINGUÉM. Calma, calma. Mas não acabou, escuta. Eu voltei pra casa.
Hã.
E ele me mandou uma mensagem, puta que pariu como esse café tá ruim, quem fez esse café?
Foi o Aldo. Que mensagem ele te mandou?
Ai,
olha -
Desculpa por hoje eu queria muito, mas com os meninos aqui a Michelle ia ficar sabendo rapidão. Vamo encontrar depois? Beijos como naquele outono. Porrra mas ele é burro, meu deus.
Burro?
A gente namorou durante o inverno e a primavera.
Pffffff...!
Mandou isso às 5h da manhã, ele devia estar fumado. Ele chegou para mim e perguntou se eu seguia a jonfa. Hahaha! Sensacional né.
E o que você disse?
Hoje não.
Pfff...!
Michelle, velho, com dois eles, pelo amor de deus!
Conta rápido que eu tenho aula daqui a pouco.
Então, ele falou com os meninos que ele ia fumar um mais tarde, que ele tava me chamando e que não era pra eu dar esparro. Eu já tava louca e de saco cheio de tanta cerveja.
Ah, dona Cecília, olha lá o que você tá aprontando heim.
Na boa. Pra mim chega. Que vontade de parar de existir. Eu respondo a mensagem? Responde! O que eu escrevo? Sei lá manda um ok bem frio pra ele.
Não, só isso não. Esquece, não vou responder. Responde! Responde mais tarde.
Que tal - eu escrevo: ok, entendo, você me liga, mas eu não vou ficar esperando por que eu sei bem como você é.
Sabia que ele morre de saudades de você?
E eu morro de saudade dele.
Ohn...!
Mas que caralho, velho.
Se controla, eu vou pra aula, me encontra no centro que a gente almoça juntas mais tarde tá?
Ok.
Sem essa cara de velha da quaker também.
Tá bom, tá bom.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

cerrado

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Da página rasgada do caderno ao correio veio em quilômetros a apelação muda da leitura, o que lê em silêncio, de pé e assustado; e a outra que pergunta qual é a notícia do telegrama dessa vez. Uma foto, uma cobrança, um agradecimento, lembrete, despedida – os beijos enviados. Padece com o cálculo dos anos, com o almoço saindo e a falta de fome que vem com a náusea. O chão de cimento pintado do outro lado da linha da estrada. As xícaras e os pratos esmaltados, estremece as vidraças com os trovões. Abraço ambíguo. Odiar. Negaram-no portanto, tal árvore não é sua, aquela terra cheia de sol e solo onde eu cresceria diante do perfume forte das frutas amadurecendo, o cheiro da chuva vindo ou vinda do chão, formigueiros, a planta seca, o sacrifício vão da vida correndo na ficcionalidade que nos conta o tempo.

domingo, 6 de setembro de 2009

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Pronto, já passou, é manhã de hoje e se você está fazendo alguma coisa agorinha é abrir presentes, dormir, limpar o resto de alguma festa em casa, receber telefonemas atrasados. Quantas camisas você ganhou? Quantos livros? Meu deus que dia perdido o de ontem, eram nove e meia da manhã, sábado, e na biblioteca eu fui devolver um livro do Philip Roth que meu irmão estava lendo para alugar um Dante para mim, vi a data do carimbo expirando no dia de ontem mesmo e soltei um oooh suspirado que o bibliotecário não entendeu. São seus setembros. Me lembrei daquele trecho do meu livro favorito em que Sofía escreve a Rímini: mais um treze de agosto! Vocês dois nasceram no inverno. Como você comemorou? Ontem fui tão perto do bairro onde você mora. Ver o jogo. Beber. Troquei olhares com um rapaz bonito, sardento, eu tive tanto medo de te ver. O abraço seria mais longo. Fiquei repetindo entre as estantes de livros, trinta e três, trinta e três, trinta e três, trinta e três, trinta e três, trinta e três, como se eu estivesse doente



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Senta no vaso não, senta aí não que você vai pegar sífilis aids gonorréia gripe suína, vai beber cerveja que é melhor. Atravessa seus quarteirões frios, o inverno foi foda, cara, e o verão chegou mais cedo, entra no pub, se acaba. Meus hematomas. E então volta para casa no silencioso banco-de-trás-de-táxi e sem tirar a maquiagem preta vermelha lilás, que escorre, sem medo da ressequida ressaca de amanhã, capota na cama e adormece.

sábado, 5 de setembro de 2009

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Os livros da biblioteca pública têm todos um mesmo cheiro. Como se todos pertencessem a uma pessoa só.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

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Vai chover, eles diriam, está todo mundo falando disso, falando que vai chover. Mantenho a lista de tarefas no caderno, vou riscando com caneta vermelha tudo aquilo que já fiz. Comprar pincéis, certo, não gastar mais de dez reais com isso por que você sabe, você sempre estraga os pincéis, pagar aquele curso, marcar de cortar o cabelo, fazer as unhas (meu deus do céu de que cor pintar dessa vez?), fotocópias, a lista extensa de textos teóricos gramáticos analíticos paralíticos. Seria tão mais fácil se eu me chamasse Carlos - eu poderia olhar para mim mesma(o) e dizer, não se mate, Carlos, sossegue, o amor - como na primeríssima linha & título da página cento e noventa e seis. Estava no índice remissivo. Parar de arrancar as cutículas com os dentes, usar esse vestido, beber menos café, alugar esse filme, terminar de escrever escrever escrever uma história; eu vou colocar essa muleta ali. Mas a gente nunca termina. A gente mente que termina.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

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Te encontrei várias vezes no metrô de Viena, por acaso, um abraço e te ligo mais tarde . Não estava em lugar algum. Te deixei tantas várias vezes sentado naquele bar com a conta após desentendimentos políticos fóbicos amorosos literatomusicais, ou ivernos, por debaixo. Ou te achei esquecido nos bolsos dos casacos depois de um verão inteiro ou numa pedra solta, na qual de repente tropecei e machuquei o pé, não havia nada sob ela. Esperando nos consultórios dos dentistas. Marcando um encontro perto daquele monumento naquela praça perto daquela árvore junto a tal estação. Ou bêbado, desolado, me abraçando pela cintura por não conseguir se levantar. Passeando com o cachorro, vestido numa calça velhinha de pijama, debruçado sobre a avenida. Jogando as flores no chão, me esperando naquele small café em Berlim (Lou nos falou dele, Lou estava certo e nós estávamos completamente errados), o isqueiro, o maço sobre o livro fechado, o meu tempo inconsciente. Eu vim aqui e olhei. Contei cada achado e perdido do inventário do seu morto.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

domingo, 16 de agosto de 2009

dimanche

Tem o telefone de pelo menos três mulheres, tão carentes como você, à disposição no celular quando aquela solidão horrível bate de vez em quando, se faz frio (Ah, o tempo, este tempo, é um lugar comum para o desejo para a única coisa que você escuta naquele lugar de luzes), se as coisas não dão certo, quando tudo é injusto, apela-se para o amor sem alma, o amor sem voz, o amor suspiro e saliva. Acordará amanhã com as costas arranhadas, ressaca e remorso, tentando definir a angústia entre aquele silêncio misterioso que dá entre as músicas randômicas no Ipod. Mora neste silêncio todo o sentido da vida, toda a razão do universo e todas aquelas coisas sobre a morte que a gente se pergunta quando é pequeno. Agora faria qualquer coisa para afastar o tédio, ligaria para uma delas e estouraria o crédito do telefone, colocaria aqueles velhos discos de vinil para tocar de trás para frente, abre um livro e não consegue ler uma linha sequer. Conversaria com seu pai, com seu irmão. Poderia matar alguém. Sim, ouviu-se falar dos meninos que saíam por aí e espancavam pessoas depois de beber à noite. Não sente vontade de sair, ausência de ânimo, pés doloridos. Você imagina a polícia chegando ao lote vago e encontrando os dois cadáveres sujos de terra vermelha? Foram os vizinhos do bairro que viram, meu deus, do alto dos prédios residenciais. Limpos e puros. Cheios de jovens transbordantes de tédio como você. Arremessando os cigarros do alto para que as mães não percebessem crimes como o fumo.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

IMPORTANTE GENTE: Prêmio Literatura Fumec + MARCIANO

Então amiguinhos, eu fui selecionada num concurso literário e vou ser publicada num livrinho! A premiação vai ser dia 09/07, às 19h no Auditório Phoenix na faculdade de ciências humanas da Universidade Fumec, na rua Cobre, número 200. Quem quiser ir, pode, mas eu juro que eu não posso dar livro pra ninguém não, já que eu vou ganhar só dez (mentira, vou dar um pra Ana Paula se ela for, por que ela é muito legal e vai pegar meu prêmio pra mim), e talvez alguém seja bomzinho lá e te dê um livro. A mulher que tá organizando esse troço já quase me matou mil vezes por que tinha uma reunião às oito da manhã e eu fui às oito da noite e por que eu não vou à premiação por causa da viagem de quase um mês que eu vou fazer amanhã...

O conto que ganhou foi Marciano, que eu publiquei em outro blog, mas publico aqui agora com esse post pra quem quiser ler. Aviso: eu não reli o conto direito depois que soube que ele ia ser publicado, então deve estar cheio de tosqueiras errinhos clichês etc. Na verdade, eu odeio esse conto.
E no mais, Beijos, volto em agosto, se não der tempo de publicar enquanto eu estiver fora... OKS?


MARCIANO

- Vamos ao cinema.
- Ao cinema, Aline? Hoje é domingo...
- E daí? Eu vou ao cinema todos os domingos. – Ela se sentou na cama - É tipo uma missa pra mim.
- A última missa que eu vi foi do pai do meu irmão. Depois disso, nunca mais.
- Ele não era judeu?
- Não.
- Que triste isso.
- Triste? Eu nem me lembro direito...
- Não, não o fato da morte do pai do seu irmão, mas o fato de que a única missa de um menino judeu ser essa...
- Eu não sou judeu.
- Você é judeu, Eduardo. Ele morreu de quê?
- Acidente de moto. Eu te contei. Aquele dia na praia...
- Contou não.
- Contei sim.
- Contou não por que eu tinha ficado com medo de perguntar.
- Relutou por quê? Tão natural falar disso.
Aline olhou-o longamente.
- De onde você tira esse vocabulário?
- Vocabulário?
- Relutou?
Eduardo riu. Tinha um prazer menino nos comentários de Aline, aquela obsessão que ela tinha em analisar cada uma de suas palavras. A moça estudante de arquitetura, meio porra-louca, mania de falar muito, sensível demais, doçura implacável. De talento, conseguia absorver cada detalhe das pessoas analisando aqueles elementos que as sustentavam e dizer pelos seus hábitos e costumes suas características principais e até adivinhar como foram criadas. Eduardo era bem diferente daquilo. Tinha algo de mudez, de vergonha, de aceitação e essas eram as características nele que Aline mais odiava. O silêncio oco que se tornava de repente, quando todo o papo bom que ele tinha lhe desaparecia da boca.
- Eu guardo as palavras importantes que eu leio nos livros, que eu aprendo. Eu gosto de guardar essas coisas. Às vezes até parece que você lê todos esses livros e não aprende nada... – Eduardo falou e de repente se interrompeu, olhando bem para Aline – Você vai me odiar para sempre depois desse comentário que eu acabei de fazer, não vai?
A menina fechou a cara, tentando não rir, fingindo uma raiva completamente ensaiada, como a de uma criança a quem se nega um brinquedo ou um doce.
- Aposto que você era aquele menininho insuportável que chegava em casa depois da escola falando pra mamãe quais palavras você tinha aprendido no dia.
Aline começou a revirar os lençóis procurando a calcinha branca descombinada do sutiã preto que, quando ela vestiu, pareceu a Eduardo que ele era pequeno demais para os peitos.
- Você vai mesmo ao cinema? – Ele perguntou com desânimo.
- Não, só vou descer para fumar.
- Pára com isso.
- É rapidinho. Tô trancada com você aqui tem várias horas, a gente já fez várias vezes e eu não fumei nenhum cigarro.
- Então fuma aqui. Não quero que você saia.
- Tá brincando? Marciano, você tem todas as doenças respiratórias do mundo. Acho que quando você for estudar na faculdade alguma coisa sobre doenças respiratórias, seu professor vai querer te abrir e te usar de exemplo pra todo mundo. São dez minutos, eu já volto.
- Se você for, eu vou dormir.
- Divirta-se.
Aline pegou o vestido que tivera o cuidado de dependurar num cabide e colocou-o. Calçou os all stars vermelhos e se levantou. Vestira-se para sair na noite anterior de maneira nada especial, como se vestiria para ir ao cinema ou para a faculdade. O pouco de rímel que passara nos cílios borrara todos por baixo dos olhos e por mais que tivesse lavado o rosto, ainda havia aquela mancha escura lembrando olheiras gigantes. Sem que Eduardo percebesse, ela se esgueirou pelo corredor e entrou no quarto dos pais dele. A cama arrumada, porta-retratos, o ar mais limpo sem aquele cheiro insuportável de janela fechada e pomada para tatuagem em que o quarto do rapaz tinha. Eduardo estava sempre com aquele cheiro infantil de pomada para tatuagem. Aliás, ele já tinha aquela aparência estranhíssima de sempre ter menos do que dez anos. Talvez pelos dois dentes da frente maiores que os outros (mas certinhos devido ao uso extensivo e persistente de aparelhos), pelas mãos delicadas como uma moça rica que pratica piano, pela pele branca sem espinhas cheia de sardas discretas no rosto e completamente evidentes no peito e nas costas. A pele não era marcada só por isso, mas também pelos três motivos do cheiro esquisito: tatuagens.
Aline entrou no banheiro dos pais e encontrou o que queria: a bancada da pia cheia de produtos de beleza da melhor qualidade. As horas livres da mãe em free-shops e o dólar em baixa eram esteticamente lucrativos. Demaquilante e algodão. Limpou o caos que estava seu rosto e sem escrúpulos de ser descoberta jogou os algodões sujos naquela lixeira mesmo. Agradava-lhe deixar pela casa indícios de sua visita. Foi abrindo as gavetas e encontrou toda a sorte de maquiagem que uma mulher podia ter. Escolheu um dos batons e passou-o nos lábios. Guardou tudo onde estava, mudou a ordem de alguns perfumes. Foi ao quarto de Eduardo, pegou o isqueiro, o maço de cigarros e abriu a porta do apartamento, descendo as escadas e indo parar na calçada vazia.
I
Quando se conheceram, ela já estava na universidade há dois anos e ele acabara de ser aprovado em medicina, em sua genial segunda tentativa. Aline podia confessar que seus primeiros olhares para cima de Eduardo não foram os mais inocentes. Porém, achou aquele menino inacessível: era um ano mais novo e era bonito demais. Uma beleza tão forte que chegava a ser entediante. Ainda mais, naquela época ela namorava e era fiel. Não podia ter olhos para mais ninguém.
A mãe de Aline resolvera fazer uma festa-jantar para Betânia, uma amiga que era madrinha de Eduardo. Aline estava num dia ruim em que todas as roupas ficavam péssimas no corpo. Acabou colocando jeans, camiseta e os sapatos de bolinhas que o namorado lhe dera. Cada mulher que chegava à festa elogiava aqueles sapatos e ela dizia, enjoadinha, foi ele quem me deu, e apontava para o namorado orgulhoso. Logo, chegou Eduardo com a mãe e o pai e ao ser apresentada a ele, Aline perguntou, empunhando a taça de vinho:
- Eduardo Marciano?
- Marciano? – Ele fez uma expressão interrogativa.
- Você não entendeu, Eduardo Marciano é o personagem principal do meu livro preferido. O Encontro Marcado, já leu?
- Ah, sim! Fernando Sabino, né?
A mãe de Aline interrompeu a conversa (que parecia que teria um futuro lucrativo) perguntando se ele gostava de sushi (adorava) e o que ele queria beber (coca-cola). O resto da noite passaram conversando ela, o namorado, Eduardo e Maíra, a filha de Betânia que por sua vez era afilhada da mãe de Aline. Um caos. Descobriu-se que Eduardo adorava Legião Urbana e que era exatamente um ano e dois dias mais novo que Aline.
*
O calor na rua estava tão insuportável que ela quis logo voltar ao quarto de Eduardo. Aliviou-se ao acender um cigarro e tragar profundamente pela primeira vez. Os cabelos estavam quase secos do banho que tomara há pouco tempo. Era uma tarde sufocante de domingo, reflexo do sábado anterior. Aliás, ela tinha um motivo para ainda não ter ido embora da casa de Eduardo: sabia que tardes de domingos quentes o matavam de tesão. O descobrira numa tarde em que fora ele quem dormira na casa dela após se encontrarem por acaso tontos de cerveja e yakissoba num restaurante oriental. Acordaram na manhã seguinte às duas da tarde e antes que Aline pegasse o carro para deixá-lo em casa, resolveu tomar um banho. Lavou os cabelos, passou hidratante no corpo todo como sempre fazia depois de todos os banhos de sua vida, sem nenhuma sedutora segunda intenção. Faziam por volta dos trinta e cinco graus quando ela entrou no quarto e se deparou com o menino sentado em sua cama, folheando seu portifólio. A maneira como Eduardo a olhou foi impressionante. Chegou perto, abraçou-a, beijou-lhe a pele, o pescoço, os cabelos molhados. Logo estavam sem roupa de novo, ele declarando que o tempo quente lhe deixava maluco. Que estranho. Aquela fora de longe a melhor vez.
Algo bem parecido acontecera naquela tarde: depois de acordarem e almoçarem sanduíches e engov, Aline disse que iria para casa sozinha. Despediu-se de Eduardo e ele foi tomar banho. Quando já tinha descido os primeiros degraus da escada, pensou duas vezes e deu meia volta. Tirou a roupa no corredor, olhando o rapaz ainda meio zonzo de sono pela porta entreaberta e entrou de surpresa no banheiro. Eduardo quase gritou. Acalmou-o passando as mãos em seus cabelos e beijando-o. A noitada de ontem, pensou ao sentar-se na calçada com o cigarro entre os dedos. Terminava cada trago com um suspiro. Sábado à noite saíra puta da vida de casa, sem muita vontade de conversar e com muita vontade de encher a cara. Encontrou Eduardo no bar e aconteceu de novo. Estava há dois meses sem vê-lo e dessa vez tivera um pouco de saudades, por mais que fosse vazio-e-frio o que acontecia, e por mais que quisessem continuar mais amigos do que divisores de uma cama ou de um horroroso relacionamento estável. Se não tivesse encontrado Eduardo no bar naquele sábado, provavelmente agora estaria morta de bebedeira ou acabando de acordar de um sono sem descanso, engolindo três neosaldinas com um incontestável desejo de se matar.
II
Meio-dia de véspera de natal. A mãe de Aline quis passar na casa de Betânia para entregar presentes. Eduardo estava lá, sentado numa poltrona ao lado da árvore de natal.
- Eduardo Marciano!
Casa cheia, beijinhos, abracinhos, presentinhos. Maíra, os pais de Eduardo, outros amigos. Aline foi apresentada a Thiago, irmão de Eduardo, e sua namorada, Natália. Se pareciam muito, exceto pela barba escura e densa e pelos óculos que Thiago carregava. No mais, formato dos olhos, cabelo, altura (beiravam os um metro e noventa) eram muito semelhantes. Aline descobriu que Natália era formada em arquitetura e as duas passaram um bom tempo conversando. O que diria dela, se perguntassem? Simpática, loirinha, uma fofura de pessoa. Quando Aline e a mãe estavam de saída, trocaram-se presentes de natal. Aline recebeu uma sacola de papel de uma loja de roupas e Eduardo uma caixa de uma loja de camisas masculinas.
- Vamos aproveitar que tá todo mundo junto e vamos abrir?
Quando retiraram os presentes dos embrulhos, todos começaram a rir: Aline ganhou uma saia preta, e Eduardo uma camisa preta, mas ambos no mesmo padrão – risca de giz. Colocados lado a lado, combinavam numa expressão assustada e sem graça. Tudo terminou naquelas risadas sem graça de natal.
III
É um exame de rotina, a ginecologista disse. Aline odiava médico, mas acabou indo. Sala de espera cheia de mulheres, algumas com crianças, algumas com bebês, uma choradeira chata que impedia qualquer um de sequer saber que havia um rádio ligado baixinho ali no canto; copinhos de plástico de café e água, revistas que por mais que fossem novas, sempre se pareceriam velhas de tão gastas. O papel nas mãos de Aline guardava o nome terrivelmente assustador do exame: ultra-som intravaginal. Foi logo chama (causando uma inveja intensa das demais mulheres da sala) e quando estava no corredor, checou o nome da médica: Maria Luíza Heller. Levantou os olhos e se deparou com a mãe de Eduardo. Quase gritou: Malu?! Era uma mulher alta de cabelos muito curtos. A semelhança entre os dois era assustadora: os olhos, o nariz, a boca, as mãos, Eduardo herdara tudo. Enquanto Aline se trocava, Malu foi perguntando, que tal seu pai, sua mãe, sua irmã? Disse que estavam todos bem. Não falaram muito de família enquanto ela fazia aquele exame – com aquela coisa que ela não sabia qual era o nome entre as pernas. Na televisão, mostrou-lhe seu útero, seus ovários e disse que estava tudo em perfeito estado de saúde. Despediram-se com beijinhos no rosto e enquanto saía, pediu que a médica mandasse um abraço para o Eduardo Marciano.
IV
A festa de quinze de Maíra. Aline soube que seria um tédio. Aquela legião de amigos antigos da mãe e aquelas pessoas que não via há dez anos lhe abraçavam com seus cheiros exagerados de perfume e sorrisos que ela tinha vontade de quebrar com os punhos. Pelo menos se sentia bonita no vestido preto com um decote generoso nas costas e com os cabelos presos de forma calculadamente desorganizada. Por causa disso já levara uma bela olhada de um dos primos de Maíra: puxa como você cresceu, como está diferente! Sentada, morta de tédio num canto com um copo de qualquer bebida alcóolica na mão, ria das rodinhas de meninos e meninas de quinze anos, inseguros e com hormônios fervilhando para fora das braguilhas das calças e das pernas aparecendo nos vestidos. Logo estariam se agarrando loucamente pelos cantos ou passando mal, e disso nasceriam enxurradas de vômito, briguinhas e muita vergonha no dia seguinte.
De repente, viu Eduardo passando no salão ainda vazio. Esquecera-se completamente da existência dele. Tinha cortado o cabelo comprido e agora parecia ser bem mais velho. Aline ficou feliz por pelo menos ter algo bonito para olhar durante toda a festa. Levantou-se, foi atrás dele e depositou-lhe uma mão no ombro:
- Eduardo Marciano!
Ele arregalou os olhos ao vê-la. Cumprimentaram-se com um abraço tímido. Aline sentiu que ele estava estranhamente feliz por encontrá-la ali. Disse que estava procurando o irmão e sua namorada, mas ao invés disso, resolveram ir pegar mais uma bebida e fugir dos dos pais, amigos, afilhados e padrinhos. Ficaram sentados em um dos sofás numa varanda (que mania nova era aquela de colocar sofás em festas de quinze anos?) e conversaram muito, bebendo a maior quantidade de drinks que Curaçau Blue, vodca e abacaxi que beberiam em suas vidas. Em certo momento, se apareceram Thiago e Natália. Os quatro comentaram quão superiores se sentiam ao ver aqueles moleques dançando e Natália comentou que no seu tempo, os vestidos não eram tão curtinhos.
- Olha só, dá pra ver até o útero daquela ali!
Na hora da valsa, Aline e Eduardo assistiram fazendo seus comentários maldosos. Quão patético era a debutante dançando com uma legião de parentes e meninos sem jeito enquanto Thiago e Natália viviam um pequeno momento romântico? Aqueles vinte minutos de pé só ajudaram a bebida subir e quando perceberam, já estavam dançando no meio daquele número incontável de pessoas. Thiago e Natália desapareceram de repente e ficaram apenas os dois. Eduardo estava perto demais. Como podia? Afinal, ele queria de Aline e ela não percebera. Podia brincar com aquilo, chegava perto e se afastava. Crueldade é coisa de mulher. Tornou-se divertido fugir. Se também queria, por que não ceder de uma vez? Um beijo, então. Não era o pior de sua vida, mas com certeza nunca seria o melhor. As mãos dele na cintura dela, as mãos dela nos cabelos dele, eram macios. Resolveram voltar para a varanda, onde foi impossível conversar – se Aline parava de beijá-lo, ele se esgueirava até o pescoço, até as orelhas da menina ou para mordê-las ou para dizer coisas patéticas como você-é-linda-estou-com-a-menina-mais-gostosa-da-festa. Aline tentava afastá-lo, dizendo que ele estava bêbado. Eduardo só ria.
- Bêbado, nada! Estou em pleno gozo da minha sanidade mental.
Aline morreu de rir. Ele custou a conseguir explicar de onde vinha aquela frase, mas ela não entendeu nada. Estava tonta e feliz.
Em certo momento da festa, percebeu uma coisa estranha na cabeça de Eduardo - ele tinha alguns fios de cabelo branco. Ele riu e justificou, antes de beijá-la de novo:
- Experiência, meu bem.
Aline ficou com um pouco de medo daqueles amassos. Os pais deles estavam lá. Qualquer aproximação e Eduardo e Aline fingiam que estavam apenas conversando. Estavam tão bêbados depois de um tempo que foi difícil perceber. Sussurrando, ele insistiu que fossem para outro lugar. Motel, rua, a casa dele, dela, o carro do irmão, a escada de incêndio, qualquer lugar. Lembrou-se repentinamente de que estava usando uma calcinha horrorosa. Seria algo improvável ele reparar na calcinha dela, porém Aline negou o convite. Gostava de sua dignidade. Passaram o resto da noite comendo brigadeiros e apreciando as garotas que passavam mal. Despediram-se com um leve beijo nos lábios e alguns sorrisos tímidos.
Quando estava indo embora, abraçou Maíra (também um bocado bêbada), que não perdeu a chance de brincar:
- Ê Aline, pegou o Dudu. Como é que você chama ele mesmo? Extraterrestre?
- Marciano. Eduardo Marciano! É um personagem de um livro, sua burra.
Três semanas depois Aline começara a namorar o homem de sua vida e se encontrou com Eduardo num show da Fernanda Takai. Cumprimentou-o da forma mais fria possível.
V
O namoro não durou mais de quatro meses. Por causa disso Aline ficou mal e nas férias de Julho foi convencida pelas amigas a fazer uma viagem para a praia. Vai ser ótimo, insistiram, festa toda noite, uma semana de bebedeira sol e mar! Os primeiros seis dias foram excelentes, mas no sétimo e último, Aline cansou-se de acordar cedo todos os dias, entrar no mar, almoçar peixe, se arrumar, ir às festas na praia até cinco horas da matina. Não agüentava mais música alta, gringos, estudantes e homens caindo em cima. Não queria mais beber e mesmo com a boa companhia das amigas, queria voltar para casa. Na última noite de festa naquele lugar, precisou de um pouco de paz e resolveu sair daquele embolado de gente. Caminhou sozinha na praia em direção ao hotel onde estavam. Encontrou, no meio do caminho, um bar ou restaurante onde havia uma fogueira acesa e várias cadeiras em volta de um pequeno palco onde um homem bigodudo tocava violão e cantava alguma música da Cássia Eller. Uma das pessoas que estavam sentadas ali havia acabado de se levantar. Aline olhou e ficou surpresa:
- Eduardo Marciano?!
- Aline? O que é que você tá fazendo aqui?
- Vim com umas amigas. E você?
- Eu vim com uns amigos.
- Que coisa maluca... Marciano, eu pensei em você hoje a manhã inteira!
Era verdade. Deitada na rede no seu auge de ressaca e solidão ficou pensando no ex-namorado. Talvez fosse o tipo de coisa que nunca superaria, por maior que fosse o número de viagens à praia. Em seguida tentou relembrar seqüencialmente em cada um dos homens que tivera. Ficou parada em Eduardo durante meia hora. Ele disse que estava na mesma festa na qual Aline estava, mas enchera o saco e resolvera voltar para o hotel. Só que no meio do caminho ele viu aquele cara tocando Legião Urbana e resolveu ficar escutando.
- Tocou Eduardo e Mônica? – Aline brincou.
Eduardo respondeu que ficava empolgadíssimo quando era pequeno e tocava aquela música. Contou histórias compridas de infância e bandas dos anos oitenta. Aline disse que não entendia por que até aquele momento no Brasil não haviam feito um filme sobre o Renato Russo. Eduardo conseguiu jutificar, amassando a latinha de cerveja que tinha em mãos, que o Renato era uma pessoa muito fechada, que não se sabia muita coisa sobre ele. Seria difícil falar de alguém assim. Talvez por depoimentos das pessoas que o conheciam bem. Pela maneira que Eduardo falava, parecia que conhecera Renato Russo pessoalmente.
Sentaram-se em volta daquela fogueira e ficaram conversando. Terminou em alguns beijos, mas não mais que isso. Na verdade, a importância daquela noite era outra. Foi a primeira vez em que Aline sentiu que gostava de Eduardo. Um amor maternal ou fraternal se desenvolvia dentro dela cada vez que ele flutuava em suas palavras difíceis sobre cada uma das doenças respiratórias e alérgicas que tinha. Aline falou que aquilo era sintoma de outra coisa. Considerava asma e alergia como uma forma somatizada de carência e tristeza, como sua acumpunturista lhe dissera. Chegou a completar: por que você acha que os escritores românticos morriam de tuberculose? Você deveria fazer acumpuntura. Falaram sobre bebedeiras, o ex de Aline, cadáveres, sonhos, dicionários, sol. Assim que o homem parou de tocar, sentaram-se na areia da praia, olhos naquele oceano bonito e muito escuro que não acabava nunca – ali, aquele encontro de céu e mar tão descrito em tudo de poético no mundo era da exata mesma cor e as estrelas refletidas na calmaria a água davam a sensação de que estavam olhando para um abismo. Aliás, que seria o mar, se não o abismo?
Quando se separaram com um beijo às cinco e meia da manhã (Eduardo levou Aline até o hotel dela e seguiu sozinho até o seu), ela sentiu uma estranha sensação de felicidade, que não sentia há meses.
VI
Aline só descobriu as tatuagens de Eduardo tempos depois quando se encontraram por acaso e não tão por acaso foram para a casa dela. Aquilo explicava aquele cheiro estranho de Bepantol que ele tinha no pescoço. Os desenhos ficavam totalmente escondidos e soou completamente bizarro que um rapaz daquele nível de comportamento certinho tivesse duas tatuagens. Agora ele tinha três. Eduardo disse que era melhor ser viciado em tatuagem do que em maconha. Não conversaram muito na noite em que foram para a cama. Na verdade, quando Aline fechava os olhos, via reflexos da cor do céu de quando se encontraram na praia. Sentia como se não o conhecesse ao mesmo tempo em que o sabia decorado, como se fosse casada com ele há bodas de ouro. Sempre se encontrariam completamente ao acaso e em momentos de tédio profundo, quando já não importava mais a bebida, as diversões, os amigos.
*
Aline deixou os cigarros marcados com o batom da mãe de Eduardo na calçada e se levantou para voltar ao apartamento. Quando abriu a porta, Sacarose, a cadelinha schnauzer da família, veio correndo e latindo. Ao ver Aline passando, seguiu-a até o quarto, onde Eduardo tinha vestido uma bermuda e conversava ao telefone:
- É a Sacarose, mãe, ela tá bem, sim... Eu tô ótimo... Melhor. Tomei.
Aline não resistiu e deu um beliscão na bunda de Eduardo. Ele tentou revidar, mas Aline se desviou, seguindo até a escrivaninha onde havia apostilas e livros abertos com esquemas bizarros, fotos grotescas, quadros e textos enormes destacados com marca-texto. Estudante de medicina. Olhou para Eduardo e ele estava com um dos braços levantados, colocado sobre a cabeça, onde se podia ver a primeira tatuagem que fizera na vida: uma estrela de Davi, quando o avô morreu. A família de Eduardo era uma das únicas famílias judias que Aline conhecia na cidade. Ele não se denominava judeu, apesar do sobrenome e das eventuais comemorações. A segunda tatuagem ficava na batata da perna direita e era bem mais bizarra: um coração. Não o símbolo, mas uma imagem esquematizada do órgão, retirada de uma enciclopédia antiga. Eduardo continuou falando ao telefone enquanto Aline se movia da escrivaninha para perto dele. Ali estava a última tatuagem que ele fizera, coberta por uma camada fina de pomada na base da nuca, localizada sobre as sardas, quase entre as duas escápulas visíveis do corpo magro: o nome dele e do irmão em hebraico.
- Tá fazendo um calor desgraçado. – Ele continuou falando ao telefone. - Também tô com saudades. Te amo, mãe. Tchau.
E desligou.
- Te amo, mãe? – Aline disse.
- É, - ele respondeu sorrindo – eu amo minha mãe.
- Você não precisa continuar passando pomada depois de um mês que fez tatuagem.
- Coça.
- Você tem alergia a isso também?
Eduardo não respondeu. Apenas inclinou-se para beijá-la. Aline sabia o que ia acontecer naquele momento, já havia acontecido tantas vezes. Por que ceder de novo mesmo sabendo que aquilo não a levaria a nada? Afinal, amava Eduardo como amava as coisas que aconteciam de forma inesperada e complexa. Ele deslizou as mãos pelo corpo dela e apertou o abraço. Não se importava com o gosto de fumaça que restara na boca ou o odor distorcido dos cabelos, xampu e nicotina. Ao invés de enfiar a mão no cós da calça de Eduardo, Aline segurou o rosto do rapaz com as duas mãos e olhou-o de frente. Antes de falar, acariciou-lhe levemente os cabelos da maneira que se amansa um bicho:
- Eu fiz uma promessa por sua causa.
- Sério?
- Aquele dia na praia em que nós dois ficamos sentados na areia, olhando para o mar. Eu prometi que não ficaria com nenhum cara a não ser que ele me desse alguma coisa em troca. Eu estou cansada de me dedicar às pessoas cegamente, como uma santa e não receber nada.
- Foi por isso que você terminou com seu ex?
Aline riu.
- Você é inteligente, menino.
Sacarose estava sentada à porta do quarto. Aline lembrou-se de quando ele contou que o pai havia chegado com o filhote em casa e eles não sabiam qual nome dar. Então Thiago abriu o dicionário em uma página qualquer e escolheu a palavra: Sacarose. Uma doçura, costumavam brincar.
- Preciso ir.
Aline se esgueirou pelo quarto e pegou a bolsa.
- Agora? – Eduardo se aproximou novamente.
- Quero ir ao cinema. Você não quer ir comigo, vou sozinha.
- Putz, vai querer me tirar de casa num domingo que nem esse?
- Não tô insistindo em nada.
Foi caminhando até a porta, Sacarose seguiu-a em mudez, as patinhas batendo no piso de mármore do apartamento. Eduardo foi, abriu a porta. Aline olhou-o com um sorriso e ao invés de dar um beijo, apertou-lhe a bochecha:
- Você é a razão pela qual eu odeio todos os domingos.
E se virou para descer as escadas. Aline soube que ele só fechou a porta quando a viu desaparecer. Quando estava na rua, ouviu um assovio alto: ele olhava e acenava da janela. Aline apenas levantou uma das mãos em resposta e continuou andando poucos quarteirões até chegar ao cinema. Ele morava tão perto e nunca se propunha a ir...
Deu uma olhada nos filmes que estavam passando e resolveu ir ao banheiro. Estava apertada desde quando começou a descer as escadas da casa de Eduardo e sentiu que seria humilhante voltar. Calcinha nos joelhos, custou a fazer xixi. Quando foi se enxugar, odiou a maneira úmida que ficava por dentro depois de muito sexo. Lavou as mãos, se olhou no espelho, cabelos desarrumados, bochechas ainda rosadas, escolheu o filme. Imaginou-se anos mais tarde parada numa rua movimentada num dia de semana, fumando seu cigarro com uma lata já morna de coca-cola zero na mão. Veria Eduardo aparecendo, atravessando uma rua. Não iria falar com ele. Estava tudo bem. Comprou pipoca e foi ao cinema.