segunda-feira, 30 de novembro de 2009

paraíso pompéia saudade

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Eu me lembro de ter escutado as coisas que você falou do pai, meio sem consolo, meio puto, talvez, não sei, você fala do fígado dele, alcoolismo, você não fala o nome dele de novo. Você não quer continuar o assunto. Nós estamos assustados. Descubro por minha conta. Escuta. Mudamos o objeto da conversa, não sei muito bem onde ela morreu. Não conversávamos de perto, como antes, mas estávamos com um bom humor cansado - a minha dor de cabeça passou em vinte segundos, depois que eu deitei a cabeça no seu ombro e fechei os olhos, acredita? - cansado de um dia longo e produtivo. Eu trabalhei a tarde toda numas idéias, você ensaiou com os meninos. Não queremos ainda voltar para casa. Sinto que você sabe de mais coisas do que eu. Tenho um vislumbre do futuro, não sei se é verdade. Você me liga. Você fala. Eu não sei muito bem, me conta algo urgente. Está chovendo. Eu me visto depressa, está frio, enrolo qualquer coisa no pescoço, vai uma jaqueta sobre os braços, de qualquer jeito. Entro no carro, bato a porta com força. Dirijo. Tem aquela placa que eu gosto: paraíso pompéia saudade. Eu estranho os nomes para a funcionalidade, mas tão poéticamente colocados. Nós nos encontramos. Você fala, você está arrasado por algum motivo. Fim. Até aí que vai minha imaginação para alguma cena que possa acontecer. Meus dedos estão sujos de tinta. Tenho agora outra visão. Entro em um quarto da casa antiga. A casa cheia de um cadáver ruim, enterrado sob alguma tábua, ocupa cômodo a cômodo com seu espírito de relógio pesado. Tenho de novo outro daqueles sonhos recorrentes, dessa vez o aquário com os peixes. Eu já te contei? Então, ele é assim, meio azul. O medo se esvai pelos meus joelhos, o medo se esvai pela sua boca. Você é um dia ameno, despretensioso e feliz, para onde tende a minha ternura.

(para Fabrício.)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

de um tumulto



Uma pessoa perdida que me disse que a ônix é uma pedra que suga todas as energias negativas de um local. O fundo do olho preto similar, estou cega, conduz minha cegueira, todas nós somos cegas, conduz essa cegueira, todos os dias você tendendo ao azul, o dia ficava azul por sua causa, com o tempo passando mania de vir e pedir pra eu cortar os cabelos, ou deixá-los crescendo, roupa na varanda, não dá pra ver nada, iminência, ainda acho que tem a ver com mar ou desertos, com pés nus em qualquer lugar, se parece com algo meu, algo que se partiu e eu nunca mais tive vontade de ter, veio dos grandes-desertos que há entre duas pessoas. Me contou coisas que não contou a ninguém. Sorri o tempo todo e se abraça às mulheres. Dança com elas. São suas cordas, enforcado. Não o vejo por dentro, nem imagino, nem quero. Quero sorrir, costume, ou um menino magrelo de joelho ralado, ou o pequeno, o menorzinho, que chorava muito. Chorava muito chovia muito. Da primeira vez que se estendeu a mim perguntou meu nome, ele inventou outro nome para mim, não faz parte, fez uma grande parte, te ligar chorando no meio da noite, não fala minha língua, eu não queria mais dançar, o que há de pele há sinceridade não justifica nada, apenas dirige. Posso colocar numa lista os fôlegos, puxadas breves de ar entre uma cerveja e outra. Me importa esse tipo de teatro, caneta deslizando sua história no papel, sensibilidade trancada na garganta, nenhuma cicatriz no corpo inteiro. Não: algumas leves, nunca sei como vai responder, sem más intenções apenas uma persistência que me dói, uma capacidade de aprender inesgotável,
um perfume que não se parece com ele.
Essa gente aqui agora, se dissolve no fluxo do ar.
Há dez pessoas,
Há duas pessoas,
não,
agora uma,
agora você,
e depois ninguém.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

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Quando ele morreu aidético e vão em 1989 eu e meus pais já havíamos voltado para o Brasil - eu não o vi morto, nem pude visitar seu túmulo. Em Nova Iorque, quando o mundo deixava os piores noventa anos de sua existência, dita contemporânea feliz vanguardista desenvolvida, enquanto ainda estamos atolados nas idéias de sucesso medievais e cristãs, minha mãe me colocava num vestido rosa de lã rosa, com meias escuras e grossas e sapatinhos, com o cabelo curto bem penteado. Eu tinha cinco anos. Era outono e cada um de nós sabia que ele não ultrapassaria o inverno. Os dias eram cinzas, marrons, alaranjados, um de cada vez e cada vez mais, as cortinas do apartamento de tijolinho eram azuis, e o ar ali dentro tudo era muito perfumado. Consigo sentir o perfume até hoje; quando me arrumavam para ir para lá eu ficava feliz por que ia ver aquele cara magro morando num lugar bonito e cheiroso, eu era a felicidade de um sempre recluso na mesma cama triste. Acho que eu achei que ele ia melhorar, até certo ponto, quando me disseram que não. Uma doença ruim, mas muito difícil de uma criança pegar, minha mãe dizia ao meu medo, e todo mundo ficou preocupado por eu saber (tão rápido e tão nova) que em menos de cem anos eu ia deixar de existir.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

poseidon



Você sente o cheiro do mar lá fora como se fosse uma pessoa. De fato, partir depois de tanto tempo aqui é como um divórcio – e seus enjôos. Eles arrastam as malas pela areia até o barco. São oito da manhã e tudo está quente demais, e de novo. Voltar para onde não há mais o desleixo da praia, doença da maresia entrando dentro da casa e consumindo os nossos pertences e nossas dignidades. Tinham razão em chamá-lo de Netuno, Netuno como um deus e como um corpo onipresente no céu refazendo os dias a seu ver. Sim, pois de fato ele entrou na minha casa, mudou a minha vida, envelheceu os meus dedos, umedeceu minhas noites. Caminho sobre seus territórios de novo, massa de água sólida e azul. Me despeço com a devolução de uma concha, e uma promessa de volta.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

1991

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Todas as vezes em que eu começava a buscar lugares diferentes, pessoas diferentes, eles me impediam falando de suas palavras - o menor era a religião negra a qual nos entregávamos através dos anos frios, muito mais era o meio recluso no qual vivíamos, minha mãe queria a minha segurança (o mundo é mau), meu sufocamento, o meu pai já habitava aquilo. Está bem aqui a imagem recorrente do passado: estou sentada no banco de trás do carro, papai dirige, minha mãe está ao lado – os dois estão em silêncio e o rádio está funcionando num volume tão baixo que ninguém escuta nada de verdade. Faz frio, está nublado e escurece mais cedo que o normal. Aliás, a tarde toda, depois da uma e meia, é um longo e lento escurecer. Tenho dezesseis anos ou um pouco mais que isso. O ar que entra pela janela aberta tem o cheiro das árvores lá fora, eu sinto que a terra está úmida como se ela fosse um bicho que habita todos os lugares. O corpo que temos é do mundo, minha mãe dizia. Não é nosso, nem de Deus, nem do inferno, é da terra, apenas a terra, que nos serve e nos consome. Eles estão me levando para conhecer um jovem rapaz com o qual no futuro eu vou me casar. Trocamos cartas. Ele copiava trechos bíblicos para mim e me fazia perguntas. Perguntava sobre os meus gostos. Ler, respondi, ver filmes. Gosto de cozinhar também, minha irmã gosta dos doces que eu faço. Na sala da casa dele, os sofás estampados, o papel de parede listrado com duas cores claras imperceptíveis como o som no carro. Ele toca uma música para mim, meus pais, os pais dele, olham orgulhosos, que eu me apaixone e aceite o mecanismo complexo da música, era o meu destino casar com um rapaz daqueles, cabelo escuro, tão jovem quanto eu. Eu reparo em tudo, no cheiro das flores, no gosto do café, na raiz escura da cabeça loira da mãe dele: está caindo. Sinto vontade de tirar os sapatos, mas me comporto. De dentro do carro, antes daquele encontro, me lembro de sentir a coisa fria depois quente depois fria de novo dentro de mim, e fico dois segundos sem respirar. Minha mãe não sabe dos dias livres do fim de semana, minha janela do primeiro andar, eu e as meninas pulamos janelas, saímos, bebemos, ficamos até tarde na rua, acordamos aos risos e olheiras. Não sei o que é, não tem nome, nunca nos falaram, mas está lá, eu sei que está lá, olhando para mim, mora no horror.

sábado, 21 de novembro de 2009

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Naquele verão, nos trinta dias que durou a viagem, usei o mesmo vestido bege drapeado cerca de vinte vezes. Ainda hoje, quando eu coloco esse vestido, minha mãe ameaça desmaiar. Eu o lavava no banho, ou no tanque no fundo da casa, quando ele ficava sujo de poeira e barro, e então dependurava no varal de arame esticado rente à parede, com todos aqueles biquínis, toalhas e roupas molhadas. Ele ficava ali, silencioso e tentador, secando. Era bom – leve, de linho, não pesava nos ombros vermelhos queimados ardidos de sol. Ao fim daquele mês, a barra descosturou, mas eu não quis jogar fora. Está dependurado ali no quintal. Praia com a família, que longe todos eles estão, cachorro rondando, primo catarrento querendo brincar. Arranhões nas pernas que deixavam tais brincadeiras com os primos, a areias e os cães, ou até o sol que a gente tentava alcançar quando se arrastava no chão, deixavam também hematomas pequenos nas pernas – joelhos e tornozelos – que ardiam tanto quando a gente entrava e reentrava no mar.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Hilda (dias amenos)

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Está bem aqui o que foi o desejo (hoje murcho) – foi buraco, abismo, ausência, mãos conduzindo o vácuo, desrespeito dos sentidos, perda dos olhos, sufocamento da fala e do tato. Aqui está o que foi o desejo: A questão de saber quem ele é, os nomes que lhe damos, pra onde se desenvolve. Não vai. Desejo mora no excesso, mora na magreza miserável do tato, pecado mesquinho e idoso. Agoniza, bicho sedado no meio do mato, o tornozelo quebrado da vítima. Desejo é o nome da parede onde eu escrevo seu nome de novo.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

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Foi quando os ratinhos mortos começaram a aparecer: vinham um tanto maltradados, na cozinha, duros; e pelo tamanho ainda deviam ser filhotes, ou no máximo adolescentes. Apareciam de manhã, ou à tarde, depois de quando eu me ausentava e em seguida chegava no meu exausto horário marcado de voltar pra casa. Eu não os via vivos em nenhum corredor ou buraco do meu apartamento, eles apenas apareciam mortos, unicamente mortos, como se atingissem minha cozinha só para morrer - e neste assassínio através do meu veneno, eles me buscavam, como um afogado que sai pela praia depois de tanto mar, respira duas vezes e acaba como um alívio olhando fixamente para o oceano bonito que percorreram, logo depois de perceber a enorme inundação que possui por dentro.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

do resto de ontem

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"Deixei pra você alguns poemas que sobraram", disse, pelo telefone, como se não estivesse se referindo a um caderno de poemas (algumas de suas páginas arrancadas, outras soltas de outros cadernos), mas como se falasse de maçãs, ervilhas, roupas, vinho, lenços ou outros objetos que de fato podem sobrar. Quando algo sobra, sobra de onde, ou do quê. Um livro de poemas, que publicaria, deixou para mim na gaveta do quarto tudo que não se encaixou, tudo que me pertencia, antes de voltar pr'o Recife e seus dias suados. "Eu vou pegar pra mim o que você perdeu", ele escrevera nas páginas gastas, com resto de digital na tinta da caneta que estourou e o cafézinho da tarde, "e ficar para mim". "Eu vou cuidar do que você abandonou", continuava noutra linha. Falava do reflexo arco-íris de sol na bolha de sabão das crianças naquela tarde que custava a entardecer (novembro), do cheiro de peixe assando (domingo), duma planta que morreu. Chamou os dias de resplandecentes. Das noites estranhas, que nem tinham direito cara de noite, dizia que era buraco de fechadura, prodígio do corpo, que morava tanto nos sulcos das digitais dos dedos quanto nos túneis negros dos olhos.

sábado, 14 de novembro de 2009

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Marina encontra o melhor conforto nas listas de coisas para fazer. Essa lista imperativa (porém com seus verbos sempre infinitivos - fazer trabalhos, comprar maçãs, hidratante, xampu, bombril; devolver os livros na biblioteca, ir a tal lugar, marcar dentista, ligar para fulaninha que hoje é aniversário dela)a organiza de volta para a realidade, o tempo de uma semana sem distrações. Meu Deus, já é novembro, Anna diz noutra de suas terças-feiras enjoadas, passando pela vitrine verde e vermelha, cheia de neve falsa do natal. Calor absurdo, chuvas irritantes, na fila do bandejão o Érico diz que se sente como um saquinho de chá colocado na água fervendo. Foi ele quem ensinou Marina a colocar o cê cedilha com o teclado americano do laptop e no fim da sua lista de coisas para fazer (estamos todos fodidos & juntos nessa), colocou a palavra DORMIR em caixa alta, seguida de um ponto final. A chuva começa (assim que Marina desce do ônibus, querido Murphy), corre para dentro do prédio - já se encharcando - e sobe todos os andares à pé (a luz acabou, querido Murphy). Lá em cima, suada, se encaminha para aquele platô suicida, cinza e vazio, inundado de água que dilui o cocô dos pombos e a fuligem. A chuva molha Marina, e consequentemente a lista deixada no bolso de trás dos jeans, dissolvendo tarefas como lavar roupa e cortar o cabelo. O prazer de se matar jamais seria o mesmo que aquele de riscar com uma caneta de cor diferente qualquer um daqueles afazeres verbalizados. Marina, com o cheiro ácido da chuva, desce dali e se senta na escrivaninha para compor mais uma lista

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

expectativas

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Antes de meter o pé no cimento do exílio, vou enumerar novamente os dias; falta quanto?, e vou anotar em algum lugar. Aqui, tem trator lá fora destruindo o mundo, sirene, dilúvio bíblico. Em breve, vou me esquecer de novo no ponto de ônibus errado, em breve vou voltar a quebrar unhas, de novo, vou fazer tudo para que ocorram choques, olho vazio, falar demais. Vai restar cicatriz no corpo, quem vem me olhar na cara encontra.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

sintomas

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Eu te amo há exatamente trinta e seis dias; o que já faz com que eu perceba que Platão tem falado demais comigo. Em breve, sei que começarei a copiar poemas de amor e guardá-los em caixinhas espalhadas pela casa para que eles não me deixem esquecer nunca. Eu não sei mais me vestir sozinho, eu parei de me olhar no espelho. Você entra na biblioteca carregada de livros, faz alguma piada depois que me ouve reclamar. O nervosismo ou bem faz que eu me cale ou mal faz com que eu fale demais. Eu olho. O meu foco se perde dentro de você. Toque no corpo, desprezo, você diz algo sobre alguém ter gostado de você, um café, outra pausa no dia pautado da lista de coisas para fazer. Você se despede de mim. Não vai olhar para os outros, por favor, dissimulados, eu, sincero, estou aqui. Te ofereço os próximos anos na minha vida. Trinta e seis dias, desbravo, vai desabar, é que nem gravidez diagnosticada em vômito, peitos e urina.

domingo, 1 de novembro de 2009

na pele dos outros {2}

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se bem que o corpo entende cada uma das calamidades de quem o veste.