domingo, 14 de novembro de 2010

sexta-feira, 8 de outubro de 2010


a.bor.re.ci.men.to s.m. : 1 disse-me ontem que não estava conseguindo trabalhar por causa do calor e do canto onipresente das cigarras, bzzz, e era bem mais forte de manhãzinha e ao fim da tarde, quando o calor infernal começava ou começava a diminuir; soltar as amarras, por que o calor é feito de cordas apertadas que vão sufocando a pele da gente, o corpo da gente. É como febre, pegar um ônibus num fim de tarde num dia de calor. A sombrinha que abri para o sol, ontem, abri hoje para a chuva: tardou, foi contínua, e não sei se o céu abre de novo. O mormaço foi cedendo ao frio. Nenhuma cigarra canta, mas é como se cantasse. Bzzz. Não consigo abrir a página do livro que deveria ter lido há tempos; mas abri, criminosa, o Livro do Desassossego, e havia uma frase que começava falando assim do tédio: “sem definição”, não terminei de ler por causa do tempo, ai o tempo, fecho também este livro e me levanto, e percebo que a ampulheta de areia que fica na minha estante está virada de lado, interrompida ao meio 2 finjo que espero que o céu se decida, mas ele não se decide, então ainda posso fingir 3 Johnnatan diz que só escreve aquele que não tem um trabalho melhor, aquele que não tem nada a fazer, corrigiria se pudesse voltar no tempo, aquele que não tem mais nada a fazer 4 queria ter um dicionário grandão, que tivesse até seu nome dentro dele, que houvesse até mesmo o significado da palavra “areia”. Queria que já fosse sábado 5 supermercado 6 e Jean-Luc estava tão elétrico, como se estivesse bêbado, talvez seja isso, uma bebedeira que não se engole, mas que cai sobre o corpo da gente e a gente fica de ressaca antes da hora 7 talvez seja esta dona falando ao celular atrás de mim, brigando com alguém do outro lado da linha, dizendo, você pode me ouvir falar antes de gritar comigo? 8 ou um filme que eu já vi mil vezes, 9 marasmo

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Conto no carimbo!



Influenciada pelo Paulo Bruscky (tá tendo uma exposição imperdível delelá no museu de arte da Pampulha, aqui em BH) resolvi pirar na idéia que ele teve com carimbos e fiz um carimbão com um miniconto inteiro, pra sair marcando por aí qualquer papel que for maior do que 6,8x10cm, cadernos de amigos, panfletos velhos, ou qualquer superfície receptiva...





Gostei até - apesar da tinta que eu arrumei não estar me ajudando muito, ela não adere muito bem à superfície do carimbo e acaba não imprimindo muito bem. (E eu odiei a cor azul). Acho que vou fazer mais alguns, só que com continhos menores que esse grandão, coisinhas de duas, três linhas, uma frase, e convido aos blogueiros amigos que, se tiverem vontade, façam também; é uma forma divertida e quase barata de materializar textos.

sábado, 11 de setembro de 2010

Relicário



Ainda conservo aqui a foto 3x4 que tirei naquele dia em que estava com a blusa do uniforme do clube manchada de mercúrio-cromo, eu tinha dezessete anos e não sorria. Nesta imagem, meu rosto parece cansado, minha pele nunca esteve tão morena e meu cabelo crescera além da minha vontade – deixei assim por uma vez, ao desejo de mamãe, que não gostava que eu o cortasse tão curto – atingindo a linha dos ombros, um recorde que só fui retomar quando me formei na faculdade e namorei Antônio, amante de cabelos longos, muitos anos depois. Toda a superfície escura e homogênea do cabelo que é hoje não se mostra assim nesta fotografia: as pontas, queimadas de sol e cloro, denunciavam meu ofício da época, os ombros largos, os pés grandes, corpo exausto. Hoje, me parece um absurdo que a natação me tenha consumido tanto na juventude. Creio que também nestes dias, mamãe já começara a alisar o cabelo de Anya, minha irmã mais nova, que nascera com cachos macios e indesejados na cabeça, e com um estrabismo operado mais de três vezes, um estrabismo que nunca conseguiram corrigir perfeitamente, esquecido quando Anya se entregou por completo ao violoncelo e quando pais estavam à beira de um divórcio definitivo que levaria meus irmãos para longe de mim.

O mercúrio vermelho-escuro sobre a superfície antiga da blusa era uma imagem-marco da lembrança do dia em que aconteceu o primeiro de três acidentes que me afastaram da água, sendo que o último deles me quebraria um fêmur e um braço, me colocaria pinos em um joelho e em um pulso, além de me dar as cicatrizes, e esse dom emblemático de sentir dor quando o tempo está para chover, resquício dos esfolados, o meu último contato com a água, irreversível como a própria chuva que eu prevejo. Mas não, não era dessa vez mas na última em que houve o acidente de carro, e a mancha não tinha nada a ver com tantas injúrias, fora apenas um pequeno resquício de uma terça-feira violenta no banheiro do clube:
Era o fim de tarde, e começara a chover, quando acabou o treino e deixamos a piscina. Eu não corri da chuva, com medo de cair (e depois de um tempo, descobri que a chuva, além de um aborrecimento eterno e uma beleza peculiar, é uma espécie de presságio, nem mau nem bom, mas a chuva é um acontecimento sempre quer dizer algo). Havia certo asco em entrar no vestiário e ver nuas as colegas da equipe de natação, encarar o cheiro de água sanitária, perfume e desinfetante, ao se despir e entrar num banho que prometera um dia ser quente, no botão “inverno”do chuveiro elétrico mentiroso. Hoje, estas moças estão todas desaparecidas, nenhuma notícia de nenhuma moça, nenhum rosto na televisão em competições nacionais e internacionais, nenhuma das moças brasileiras nestes eventos é da mesma cidade ou freqüentou o mesmo clube que eu, apesar de haver algumas promessas, levadas por olheiros para Pequim, Paris, Melbourne, Quito, Tóquio, e esquecidas para sempre pelo quotidiano exaustivo de treinamentos. Bárbara, a única com a qual eu conversava de verdade (eu era conhecida por uma timidez equívoca enquanto eu deveria ser conhecida por meu amor ao silêncio, e nem mesmo a Bárbara fora capaz de compreender isso) me falava sobre sapatos, provavelmente, ou matemática, ou dedos enrugados e unhas quebradas, ou depilação e marcas de biquíni, ou almoço, e ela falava, quando uma das meninas, que provavelmente se chamava Nádia ou Natália empurrou outra, que se chamava Isabela ou Isadora, e as duas começaram a brigar. Uma briga física: empurrões, mordidas, cabelos, me lembro bem desta imagem, uma delas, a que atacava, estava de calcinha e sutiã, enquanto a outra, a que era atacada, estava completamente nua. “Puta”, “piranha”, “vaca”, ouvia-se por todo o quarteirão que cercava o clube. Então, enquanto as velhinhas que caminhavam na água antes da novela começar, as grávidas que vigiavam os outros filhos brincando na piscina e umas meninas pequenas observavam com horror a cena, aquela senhora que cuidava dos vestiários tentou separar a briga de gritos, grunhidos e pontapés, e eu não consegui me esquivar quando Nádia ou Natália caiu em cima de mim. Ainda gritava, mas foi segurada pelas mãos escorregadias das outras nove meninas que pertenciam à equipe.

Eu não havia me machucado dessa vez (não podendo considerar este episódio como um dos meus acidentes), mas acabei tendo o meu chinelo arrebentado pela ira daquelas duas meninas. Depois de um sermão da senhora do vestiário para cima dos ouvidos de todos (“não é assim que a gente resolve as coisas” ainda ressoa dentro de mim, naquela voz cinza de fumante da mulher), terminei de me vestir e fui arrastando o meu chinelo arrebentado, caminhando ao lado de Bárbara para o lado de fora do vestiário. A chuva havia parado, e Bárbara finalmente começara a falar, em voz baixa, o motivo daquilo. “Foi por causa de um dos meninos”, disse ela, “ele é da equipe, você deve conhecer – o Aquiles”. Sim, eu disse, eu conheço um Aquiles na equipe, mas nunca troquei uma palavra com ele, eu não trocava uma palavra com ninguém. Algo havia acontecido – Aquiles estava com uma das meninas, e elas haviam brigado por que, numa festa, ele beijara a outra. Na época, não sei se fiquei chocada ou apenas sacudi a cabeça, marcando a idiotice da situação, mas o que mais quis foi ver a cara deste Aquiles, que interesse grande era o que se construíra pelo rapaz. Eu já me interessara por alguns, sim, e já beijara outros, colecionando algumas experiências –todas frustrantes – das quais eu podia falar, fingindo uma futilidade exigida naquele meio. Mas nada me interessava, naquele momento, além de ver o rosto de Aquiles. “Vou te mostrar quem é”, Bárbara disse, enquanto eu arrastava o meu chinelo através do espaço entre as árvores do clube. Espere, eu disse, quando estávamos para entrar no corredor de troféus da secretaria, e eu tirei o meu chinelo, decidindo seguir descalço dali pra frente. Depois de alguns passos seguros em cima de um chão úmido de folhas que caíram depois da chuva, eu pisei em cima de alguma coisa que eu não havia tido cuidado em olhar, uma coisa de um conteúdo primeiramente mole e depois muito quente. Demorei a perceber o quanto aquilo doía, a dor me fez esquecer que eu queria o rosto de Aquiles, e por essa cegueira da dor, compreendi só depois de alguns segundos demasiado longos que aquilo era uma dessas lagartas de fogo que, como aprendíamos na escola, possuía este veneno escaldante, e que um dia se tornaria uma borboleta.

domingo, 29 de agosto de 2010

fumaça



Jean-Luc, hoje eu não tenho vontade de fazer nada. Preciso me perdoar, ou, bem, necessito lutar contra essa dominação esgarçada em permanecer estancada na poltrona, olhando para o dia, fazendo dele o meu shabat errado e criando as leis que vou cumprir até o fim da manhã, quando a fome for maior que a placidez e decidir que devo fazer um almoço ou algo que não deprima tanto o domingo. Augusto ainda dorme, é um aborrecimento, há pouquíssima gente acordada quando deveria estar dormindo, isto não é compaixão, estão todos perdidos como eu. Escute: O menino do nono andar aprende flauta doce. Sinta: este cheiro de cigarro – alguém fuma no corredor do prédio. Uma vez você me contou, enquanto fumava, perguntaram a Juan-Miró, o artista, se ele fosse politicamente preso e tirassem dele todos os materiais para fazer a pintura dele, e você disse que o Miró disse “não importa”, você tragou, e disse que o Miró disse “eu posso pintar”, soltou a fumaça enturvecida no ar, “com a fumaça do meu cigarro”.

Escrevo hoje também uma carta ao Augusto: escrevo a ele, tenho vontade de te levar a todos os lugares em que você quer muito ir, e quero ir com você a Buenos Aires, Barcelona, São Petersburgo, Rio de Janeiro, quero ficar com você dentro da minha casa, mas você sabe, aquilo “todas as cartas de amor são ridículas”, e a lerdeza hoje é tanta que nem me lembro de qual heterônimo do Fernando Pessoa escreveu isso. Foi o mesmo heterônimo que escreveu “já disse que não quero nada!”, disso tenho uma certeza quase exata, mas me foge, me foge o nome, me foge Portugal, me foge tudo. Uma carta é quando a gente passa a existir para o outro: isto veio escrito no meu livro preferido. Uma carta é quando a gente existe em função do outro. Hoje, doeria muito reescrever palavras do meu livro preferido, mas enquanto escrevo a você, Jean-Luc, não dói tanto por que uma carta é sair de si e ir para uma cabeça que a gente acha melhor que a da gente. É um repouso.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Quarteto para o fim dos tempos

“Tudo isso não passa de tentativa e balbucio, se pensarmos na grandeza esmagadora do assunto!”
Olivier Messiaen.



Tanto a dizer. A sensação nas pernas, esta moleza, não havia passado; tampouco os arrepios, consumindo o corpo em uns espasmos desagradáveis, um beliscão no tempo, relembrando a música da noite anterior – porém agora já era manhã, não manhã longa e estendida (como a toalha que havia colocado para secar na janela do quarto, depois do banho), mas às nove, ou oito e meia, ou apenas oito, reescrevia o nome da cidade no caderno, junto à data do dia de hoje, que não parecia verão. Estava frio, um abismo; entretanto, havia sol, ele ultrapassava, espião, os vidros entreabertos e se estendia, aí sim, sobre uma nesga retangular da parede decorada do quarto. O papel estava desbotado, como se há muito tempo houvesse um desenho além de flores rosas, neoclássicas, farsantes e tediosas, era como se algum dia elas houvessem sido algo mais forte e mais inundado de significado, como rosas vermelhas, ou como se... Como se... Não achava uma comparação decente: Uma metáfora feliz. O rosto estava meio áspero, de chorar, talvez, ou por causa do vento no rosto, noutrora, dentro do carro sobre a estrada, quando ela pediu para Lucian abrir a janela, e sentiu aquilo embaraçar o cabelo fraco antes que começasse a chover... Antes que começasse a chover, sentiu o cheiro da chuva, e depois sentiu o cheiro queimado do sol se abrindo de novo. Alguém, alguém morreu nesta casa, pensou consigo ao sentir uma energia ruim vindo de novo do papel de parede, e outro arrepio, agora não proveniente da noite anterior, mas de quando alguém morreu nesta casa.

Olhou de novo os papéis da Anya, coisas velhas que Lucian havia levado para lá com intuitos não muito claros. Ele apenas havia enfiado uns papéis velhos, guardados há anos na casa em Nova Iorque, alguns diários, ou folhas soltas, anotadas, amarradas com uma fita. Algumas cartas a ele, Lucian, e nenhuma delas era assinada, em nenhuma delas a Anya assinara o próprio nome. Eram cartas para não serem entregues, mas que acabaram sendo, através do tempo das coisas guardadas. Lucian é nosso guardião, Eira ponderou e anotou, enquanto relembrava que ele guardava com o mesmo esmero e capricho as coisas que ela havia escrito. Então olhou de novo para o caderno. Ravensbrück era um nome horrível, reparou, assim como a sua letra, totalmente diferente da de Anya, que era uma letra exata, legível, redonda, caligrafada, minuciosa, como as notinhas pequenas nas pautas musicais, partituras abandonadas dentro de uma pasta, na beirada da mesa. Ravensbrück era um nome horrível, nome que ela não sabia o que significava mesmo depois de procurar no Google antes de viajar, percebendo que Ravensbrück podia ser três coisas. 1) Uma cidade na Áustria, onde Anya já estudava música há quase dois anos; hospedaria perecível de Eira e o irmão, visitantes. 2) Um campo de concentração nazista na antiga Alemanha oriental, perto de uma cidade que se chamava Furstenberg, dizia a wikipédia; e este campo, (ela já sabia por si, numa informação antiga) se especializara em receber apenas mulheres; decerto houveram homens, mas ele era um campo para matar mulheres. 3) Um sobrenome, sobrenome de gente famosa e ordinária na lista azul e democrática do Google, links que se referiam a fulano Ravensbrück, fotógrafos, biólogos, artistas, blogueiros, economistas, políticos, amigos, músicos... Que incrível, buscou a página de uma dessas pessoas, mas apesar de haver uma foto do Carl Ravensbrück, estava tudo naquele alemão austríaco, ilegível, cheio de creme, açúcar, maçãs cortadas.

Ouvia os passarinhos lá fora, talvez fosse também um ornintólogo, o fulano Ravensbrück, jogou no tradutor: Ra-vens-br-trema-u-ck. “Raven ponte”, dizia o resultado. Resolveu separar. Ravens Brück. “Corvos ponte”. Pensou que era improvável um ornintólogo que fosse interessado em estudar corvos, e desejou por algum tempo que naquela casa houvesse um computador com internet, talvez o tivessem, pensou em perguntar para a empregada (a casa era grande demais, um computador deveria haver), mas não falava a mesma língua que ela. Só a Anya, que conhecia três tipos de alemão, os guiava por ali. No mais, era inglês ou francês, ou aqueles escritos, todos na língua-madre de todos os três filhos, o português, Anya havia escrito: Querido Lucian, esta tendência de endeusar e amar muito as pessoas me destrói, quando nós endeusamos muito as pessoas é terrível por que eu não posso discordar delas, eu tenho medo delas, eu não posso me posicionar nem questionar nem destruir nada, então fica tudo pesado. Eu não posso. Quando Anya ficou sabendo das próprias palavras passadas, escritas há tanto tempos, ela riu e disse que não ia reler, e que Lucian deveria destruir tudo aquilo, mas Lucian era o guardião da história.

Através da janela estava o bosque, olhou, era um bosque austríaco de verdade, o bosque mais antigo de todos, sentiu vontade de sair; perdeu-a em seguida, teve vontade de voltar para os papéis de Anya. Os esboços eram pesados e faziam sentido demais. Eira escreveu – Escrever era uma cura. Uma espécie de reabilitação para a vida. Escrever era como usar óculos, talvez, ou levar consigo uma muleta, ajudante de uma perna ruim... Não, não! Que merda, Eira. Rasgou a folha de papel com o nome do campo de concentração, a data e o nome do irmão. A perna ruim, Eira levantou a calça e viu ali as cicatrizes do acidente antigo, a perna ruim era uma péssima metáfora por que era uma perna ruim de verdade, uma palavra física, que ainda doía de vez em quando, apesar do tempo, tudo ia continuar doendo de leve apesar do tempo. Perdeu de novo a vontade de ler os papéis de Anya, sentiu outro arrepio, este tempo beliscando cruel de novo a pele do braço, e se jogou na poltrona velha que já ajudara tanta gente a ler livros, ela supunha, porque não sabia nada de ninguém daquela casa que falava uma língua estranha, única, quase morta.

Anya estava diferente. Ficara bonita. Agora usava óculos, de vez em quando (não para tocar o violoncelo, mas para ler mapas e livros), cortara o cabelo, assumiu-os cacheados, mas parecia mais alta, um pouco mais cheia, mas não era uma gordura de barriga, era uma gordura de coxas, bunda e peitos, peitos descontrolados no decote, aqueles peitos de mulher fértil, ainda muito jovem. Anya parecia ser virgem, muito virgem e pura, como se os dias na Áustria branca tivessem tirado a morenice original que tinha na pele (“há tanto não via o sol”, dissera naquela manhã), como se ela tivesse aprendido a ser mais educada, mais tímida, mais silenciosa. O violoncelo, logo o violoncelo, esse instrumento indecente, obsceno, ela sempre gostou do violoncelo, não havia jeito, não houve nada além do violoncelo... Ainda haviam, porém, os olhos pretos, o sorriso cor-de-rosa, e o nariz de papai. Ela nunca iria esquecer o nariz de papai, ele havia colocado o nariz errado no rosto da filha mais nova. Era como uma palavra escrita de maneira equivocada. Olhou de novo através da janela, o sol estava mais alto. Se sentou para escrever, mas sentiu vontade de entrar no bosque. Escreveu de novo o nome da cidade, a data, e então o nome do irmão, Querido Lucian.

Estivera a vida toda longe de casa. Sabia disso há muito tempo. Dessa vez, fora a Viena, falar do pai a Austríacos, que a aplaudiram de pé, Lenny havia falado: o que você fez com o trabalho do seu pai foi incrível, parabéns, ele disse isso em inglês, e eles foram a um coquetel depois, e Eira foi cumprimentada por várias pessoas, assinou alguns livros, sorriu para umas fotos, que depois saíram publicadas num jornal, e ela percebeu como as próprias sobrancelhas estavam tristes. Estava também nos papéis de Anya: Quando ele morreu, eu quis morrer também, quero morrer há anos, estou cansada. Eira achou incrível aquilo. O pai havia morrido quando Anya tinha apenas treze anos e o papel-superfície da fala suicida e malvada não parecia ser tão velho assim, Anya tinha vinte e um agora. Uma reabilitação, uma habilitação... Os escritos não eram estranhos, parecia que era de quando ela publicara aquele livro, o primeiro livro que reunia o trabalho do pai, a escrita como cura. E então eles disseram, Lucian e Eira disseram ao Lenny que tinham que (queriam muito) ir a Ravensbrück ver a terceira parte da trupe, e Lenny disse, não se preocupem, meus pais têm uma casa de campo super-perto de Ravensbrück, e depois apareceu no hotel. Ele desenhou uma mapa. Ele nos deu as chaves. Lenny se chamava Lehnard Maiehoffer, e Lucian e ele haviam se conhecido na universidade, em Nova Iorque, por isso Lenny, Lenny estudando literatura, Lucian estudando regência, era uma boa dupla, de conversas, livros, cervejas e vômitos. Lenny voltou para a Áustria branca, mas eles nunca se separaram. Nunca mais se separaram. Intimidade. Lenny havia falado que havia um rio naquele bosque, e por mais que se assomasse à janela, por mais que... Procurasse o silêncio da água... não, não, não o apreendia, eram só passarinhos e sol e vento, nas folhas, devagar. Rasgou a página.

A peça do recital que Anya tocara na noite de ontem se chamava Quatuor pour la fin du temps, e pelo tempo corrente antes de começarem a tocar, Eira se aborreceu tentando traduzir o nome. Era uma peça querida, o violino, à esquerda, a clarineta, à direira, o violoncelo ao centro e o piano, um pouco atrás. Estava de frente para a irmã, na oitava fileira do teatro lotado. No quinto movimento, Eira chorou ao ver a Anya sozinha com o pianista, ela viu o braço de Anya subir e descer, com os dedos nus, e o rosto da irmã ia ficando muito vermelho enquanto ela tocava, por que era uma peça tão, mas tão triste que havia um silêncio lutuoso nela. Lucian falara, traduzindo o programa austríaco, que Messiaen compôs essa peça no cativeiro, e a primeira vez em que a executaram foi em um campo de concentração nazista chamado Stalag VIII A, que antes fora alemanha e agora era polônia, fronteiras. Ocupações. A peça terminava triste também, em silêncio, e era tanto silêncio entre as notas e ao final que as pessoas ficaram com bastante medo de quebrar aquilo, de aplaudir de verdade quando acabasse. Todos queriam o silêncio, o silêncio foi o bis, antes do aplauso. Bravíssimo! De novo, à janela, Eira percebeu o silêncio absoluto entre o pio dos pássaros, e ele era realmente completo e leve, vazio, como quando ficamos dois segundos sem respirar, quando bate de novo o arrepio e em seguida as pernas molengas.

O arrepio era a urgência de conversar com alguém: Que silêncio tenebroso esse dos pássaros, quis comentar com Lucian, e pensou em escrever de novo Ravensbrück, treze de julho, Querido Lucian, mas não queria mais rasgar e jogar o papel fora. Faltava tempo. O quarto começava a esquentar. Queria ver uma foto de Olivier Messiaen, imaginava-o um homem educado, tímido e silencioso como Anya, um homem de alma azul. Lucian disse que ele atribuía cores à música, e que havia um movimento (o sétimo) em que ele fazia um arco-íris com os sons. Voltou aos papéis da irmã, quase caiu no chão de tão fracas que estavam as pernas agora. Era injusto: na literatura prosaica, idiota e leve de Anya, Eira conseguia ver o próprio rosto. Ela é muito forte, a Anya, para também ter aguentado tudo que eu aguentei. Não suporto a idéia de encostar em você, Lucian, Anya havia escrito, todas as vezes em que eu encosto em você sinto algo de náusea. Mas mesmo assim te amo, e apenas toco o braço do meu irmão, é por que minhas mãos querem dizer algo a você. Todas as vezes em que eu tocaria em você para dizer algo, é quando vou escrever algo a você que não pode ser dito, e é sobre odiar o que é a vida, e quanto mais eu a odeio, mais preciso dela, e ela precisa de mim: para odiá-la? Para compreender um erro. Desordem de esboço. Quando o pai morreu, ela transcreveu todos os manuscritos. Agora, mesmo com Anya viva, ela podia transcrever também aqueles manuscritos para melhor conservá-los. Sempre aparecia um estudante agradecendo à transcrição nobre dos manuscritos do meu pai e pedindo para ver os originais, que ela exibia com gosto. Se houvesse um computador aqui para transcrever os textos de Anya, certamente, mas não, aquela era uma casa antiga. Uma casa morta. Lucian, você tem medo de encostar em mim?

Impaciente, voltou à poltrona; sem se suportar, ligou para Lucian. Ele não atendeu. Estava na universidade de Anya, com os professores de Anya e os colegas de Anya e a biblioteca de Anya e os amigos de Anya e os corredores de Anya. Voltou à janela. Na estante, havia um atlas. Folheou. Um livro, o Atlas, segurando o mundo em imagens em folhas, o mundo sobre os ombros. O mapa de Lenny, o haviam transcrito para o google earth, que mandava virar nas direções da estrada facilmente encontradas por um número que se parecia com um CEP. Acharam logo, a casa, o bosque. Na tela, qualquer um podia conhecer Paris sem ser convidado. Então foi interrompida, o telefone começou a vibrar na mesinha de apoio para os livros lidos pela poltrona. Atendeu, alô. “Alô, Eira, você me ligou?”, ele disse, “escuta, Lu, esses escritos que você deixou na mesa, de quando até quando a Anya escreveu isso?”, Eira perguntou. Lucian ficou um tempo em silêncio. “A Anya?”, ele disse, “como assim a Anya?”. “As folhas que você deixou sobre a mesa”, Eira repetiu. Lucian novamente não respondeu com rapidez. Ruído. Conversas de Anya, a voz da irmã austríaca ressoava no fundo. “Não, não, não”, Lucian disse, “não foi a Anya quem escreveu isso. Foi você. A Anya nunca escreveu nada assim”. Lucian, em seguida, falou que eles já estavam voltando para buscá-la para almoçar e passear pela cidade. Eira perguntou as horas. “Quase dez”, ele disse, e falou que ligaria em breve. Desligaram com um beijo.

Eira foi até a mala aberta no canto do quarto, tirou do corpo a calça e o casaco de moletom, colocado por cima do peito sem outra interferência de blusa ou sutiã, pôs um vestido preto do qual gostava muito, e de novo o moletom por cima. Meteu o telefone celular no bolso, e pegou o caderno e a caneta sem olhar para a mesa onde ficaram as coisas que ela havia escrito há anos, em uma viagem furtiva a Nova Iorque para ver a mãe, enquanto ainda se entregava ao trabalho de transcrever os papéis do pai, e sentiu náusea, a mesma náusea de quando encostava em Lucian sem querer, abriu a porta do quarto e desceu as escadas. Ainda viu a sombra da empregada num dos cômodos iluminados de sol (ela provavelmente arrumava uma cama ou espanava uma estante), antes de descer as escadas, atravessar a sala, a cozinha, chegar ao quintal onde havia uma piscina seca cheia de folhas velhas das árvores. Lenny disse que havia um rio dentro do bosque. O dia esquentara a ponto de fazer suar a mão que segurava o caderno com capa de couro falso. Mas o vento ainda era frio e cortava a pele das pernas por cima das cicatrizes. Se aproximou das árvores, preocupada em percorrer o caminho em que ainda havia sol antes da sombra absoluta. Um corredor de sol terminava na forma inexata e redonda da copa da árvore mais próxima. Folhas secas, no chão, ruíam e se amassavam enquanto eram pisadas. Não queria pôr os pés na sombra, não queria deixar a parte que era aquecida por aquele sol volumoso e alegre do verão, ela havia escrito a Lucian, ela havia escrito a Lucian, não era Anya, não confie no sol, Lucian, escrever é um processo de ida e volta. Do começo ao fim, repetindo os compassos obsessivamente até conseguir algo certeiro – o som ideal. O som que vai fazer mais sentido ali. O som “correto”, já ouvi dizer, mas correto é uma palavra incerta de se usar em todos os sentidos por que correto é uma palavra que precisa de um pilar de muitas palavras para ser sustentada. Então ela cai e se desmancha, o correto é leve, é leve como sol, ele não fica aqui conosco nunca. Não se pode confiar no sol, Lucian. Nunca confie no sol, não confie na música, mas assim, ainda não podia escutar o som da água, Lenny não falara uma mentira, havia um rio ali, ela sabia, havia um rio ali. Precisaria se aproximar mais para escutá-lo bem. Talvez pudesse até mesmo enxergá-lo. Entrou no bosque.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Anotações sobre uma peça anônima para piano



Eu sou uma estrangeira. Estou em um lugar que não é uma casa, é a casa de outra família e há um cheiro doce e forte, como o de lavanda ou de lençóis limpos. Há uma escadaria e acima dela, no corredor, há um quarto que foi destinado a mim. Durmo nele há algumas noites, mas sei que em breve devo tomar uma estrada e um avião, para nunca mais (ou por um tempo vasto) dormir nesta cama. Chove, de maneira esparsa, desde quando eu cheguei, e chove um pouco agora, daquelas chuvas duvidosas, uma umidade no ar que engana a gente. As pessoas desta casa são amigos da minha família (mas há algum laço de sangue, um parentesco mínimo, já que Jean-Luc está aqui, e ele é meu primo, o que aperta mais a corda na garganta) e todos nós perdemos uma pessoa: ou alguém morreu, ou aconteceu um divórcio. Talvez, alguma criança tenha morrido, apesar de eu escutar esse barulho frenético de crianças quase tristes na sala do andar de baixo. Estou brevemente mais jovem do que eu sou agora, visto um vestido que não me pertence mais, e minhas roupas são pretas. Ainda há umas flores lá fora, no jardim, mas são poucas, por que Jean-Luc disse que houve uma espécie de geada, a encontraram no amanhecer, matou a grama, vai matar a grama toda, ele disse como se realmente se preocupasse com a grama. Eu vejo do vidro o céu cinza do lugar e as gotas que aos poucos congelam contra o vidro, e em breve não vou mais ver nada disso. Dobro, a pedido de uma tia postiça, algumas roupas de criança (dos gêmeos que picotaram as partituras do Villa-Lobos, provavelmente, mas não posso rir disso agora, é uma música realmente muito triste, esta, não vou rir disso agora, vou rir depois), ajudo a fechar uma mala, recolho xícaras de um café. Jean-Luc entra pela porta e se senta de costas para mim, enquanto eu arrumo as coisas, e ele diz que talvez não tenha dormido, confessa: ele não sabe qual é o estado de consciência que ele possui, no momento. Fala do infinito de novo, “minha vida é recapitulada, o passado à esquerda, o futuro à direita – o futuro também está sendo recapitulado”, ele fala, ele diz de pequenas estrelas frágeis, estas cenas, ele diz que as imagens estão um pouco embaçadas. O que você está falando, eu digo, uma peça somente para piano tem este espaço para o nosso diálogo. Tem, Jean-Luc responde, ainda de costas. “Este lugar é gelado”, ele diz, “nós já vamos”, eu digo. Ele se levanta, peço que ele toque de novo a música em questão, e ele diz, essa música é muito importante para mim. Eu digo: Pergunte ao seu professor quem compôs isto. Ele não sabe quem é o compositor, só sabe ler a partitura, de frente pro piano. Ele não diz nada. Ele olha pela minha janela. Nenhuma esperança. “Parece que vai começar a nevar, não?”

sexta-feira, 16 de julho de 2010

história do fim


(L., você me lembrou hoje no café de que eu tinha escrito um conto para você, e aqui você o tem. Este é o primeiro de todos, e ele sozinho haveria de se chamar História do Fim, mas aconteceram uns desdobramentos, espero que você entenda, e esta moça – o nome dela é Maria Lúcia, Malu ou Marilu, como alguns a chamam – acabou por escrever mais de uma carta a seu primo e confidente Jean-Luc. Porém, aqui está a carta primeira, longa, o conto original, claramente corrigido, mas ainda sincero. Um abraço apertado pra você aí, e um agradecimento pelas palavras que você me deu depois que eu cheguei em casa. Não me roubou um momento feliz e, em contraponto, me presenteou com alguns minutos da mais sincera alegria de reafirmar como você escreve bem.)




Minha planta está doente, Jean-Luc.

Não – não, eu minto, esta planta não é minha, mas eu acabei por chamá-la assim, como uma posse ou uma coisa que eu amava bem quando resolvi deixá-la vivendo em minha casa. Não a recebi como um presente nem paguei por ela, tampouco lhe dei um nome, mas me afeiçoei o bastante para afinal regá-la todos os dias por volta das seis da tarde, quando abandono na área de casa qualquer roupa suja de um dia de trabalho e, às vezes, fumo um cigarro (aí está, cedi à propensão completa ao tabagismo em favor de sua satisfação) quando as coisas não andam muito bem. A planta, moribunda, é do meu ex, um detalhe vivo que ele se esqueceu de levar deste apartamento. Há muito tempo, quando ele me deixou, pensei em jogá-la fora (ou, mais dramática: quebrar o vaso, arrancar as folhas e atear fogo aos galhos), mas percebi que isto seria uma injustiça a outro ser. Era como devorar o filho alheio. Então, resignada (perdão pelo paralelo, mas era “como quem engole veneno”), passei a regar a terra como se eu não tivesse tido escolha. Houve a resolução de que um dia eu deveria levar o vasinho de volta para a casa do meu ex, mas acreditei que seria um feito excessivo, ele provavelmente não se lembraria da planta (a História se esquece do homem e os homens retribuem esquecendo a história, trate de manter sempre disso em frente, Jean-Luc) e de repente os dias começaram a ficar chuvosos demais. A plantinha foi gostando daqui e agora, além da água às seis, tenho que lidar com esta doença ainda sem conseguir dizer que é uma doença e que pertence a mim.

Reparei que da última vez que você me escreveu (uma mensagem no domingo dezesseis de junho às oito e catorze da noite) havia um símbolo de ponto e vírgula entre as frases e achei engraçado por que Lilya tem o mesmo sinal tatuado no pulso esquerdo. Você percebeu este detalhe? Foi por isso, não foi? O pretérito mais-que-perfeito é o tempo verbal preferido da Lilya, enquanto o ponto e vírgula é o sinal preferido dela, você notou, não notou? Pulso fino de moça fina. A história não é tão refinada assim, prometo: Lilya tentou se matar e depois que sobreviveu, mandou bordarem aquele ponto e vírgula bem em cima da veia viva do pulso; se você quiser sentir o pulso dela batendo está ao alcance da sua mão – encoste os dedos sobre a pele e perceba aquela vibração que ensinou o ritmo aos homens, sim, ela existe, esta mulher está viva. O suicídio foi a pausa que ela teve que tomar; talvez você tenha que entender essa pausa enquanto estiver interessado nela. Seus interesses, Lilya, um café, uma pequena notícia, uma breve fofoca, uma troca incessante de discos e recortes de livros, ou cartas breves (nem tanto...) escritas um ao outro entre porres e partituras, ou para me entregar um presente de aniversário velho e me fazer sorrir em frente a algo que eu nunca esperava que você faria. Somos mulheres, Jean-Luc. Não existimos. Tudo nos afeta.

Falando dos outros – a irmã mais jovem da Lilya, a Gisela, aquela que é orientanda da sua mãe, acabou de pôr fim em um namoro de quatro anos. Estamos todas um tanto sentidas, é necessário frisar. O rapaz se chama Cadu (Carlos Eduardo) e é um grande amigo meu. Ele está terminando um mestrado em história e a Gisela, como você sabe, logo se forma em arquitetura. As dissertações, os TCCs, os empregos escravos, acho que quando tudo aquilo acabasse (acredito que eles mal sabem o que é tudo aquilo), planejavam se casar, ou pelo menos ir morar junto, como é bem de praxe entre nós, liberais, estudantes de ciências mais ou menos humanas e seus desdobramentos, pessoas que se consideram mais livres que as outras, de certa forma; habitariam um apartamento de primeiro andar, subvalorizado, numa região que fora chique em tempo áureos, numa rua de velhos, num bairro de árvores, mas isso não vai mais acontecer. Eis o fim. Eles estão terminados, senhor, e o futuro prescrito nos sonhos pré-conjugais serão Nada a partir de agora.

Sabe o que mais me impressiona nisso tudo? Eu passei o último fim de semana com Cadu e Gisela enquanto eles ainda eram um casal. Na sexta, Cadu buscou Augusto e eu em casa e nós fomos ao teatro com a Gisela, e alguns amigos (o Flávio inclusive perguntou por você e eu disse que estava bem e duvidei silenciosamente de minhas palavras enquanto eu pensava em seu trôpego e gago coração, desejando alguma doçura de Lilya). Ele havia acabado de fazer uma farta barba que mantivera por alguns meses e se parecia com um moleque, irritado por que a Gi se atrasara para vestir na indecisão das mesmas roupas escuras, um costume de todo fim de semana. Era uma peça sobre fome e merda. Boa, mas não excelente. Depois, de carro, fomos àquele bar que você gosta, onde a gente pode ouvir vinil a noite toda. Falamos todo o tempo de viagens bebemos cerveja, comi alguma coisa que eu não lembro muito bem o que era. A mãe do Cadu, por volta das dez, ligou e pediu para falar com a Gi. Gisela havia acabado de voltar da Espanha (você sabe disso, não sabe?) e trouxe um azeite especial para a sogra. Ouvi agradecimentos do outro lado do fone e as duas conversaram por um bom tempo, sem faíscas, e eu sempre soube que o relacionamento era assim, gente madura. Ficamos ali até as duas da manhã, acho que o Cadu, o Flávio e o Guto queriam ficar mais, enquanto Gisela e eu bocejávamos já fazia uma hora. Nos deixaram em casa. No dia seguinte, Augusto fez um almoço, matamos umas garrafas de vinho. Fazia frio. (Às onze da manhã fiquei parada no corredor, com o telefone na mão, pensando se eu deveria te ligar, mas resolvi que não, melhor não). Ficaram todos aqui até quase sete da noite. Então, depois que as mulheres lavaram os pratos enquanto os homens conversavam sobre música na sala, todos partiram (inclusive o Augusto, a mãe dele tá no hospital, mas não é nada grave não, juro, ele só foi dormir lá e no dia seguinte ela recebeu alta e nós recebemos paz) me vi sozinha com a planta, que já dava sinais de estar mal. Enfim: tomei um banho e dormi bastante. Cadu e Gisela terminaram quando eram quase oito deste mesmo dia, dentro do carro estacionado na porta da casa dela. Talvez tivesse sido melhor deixar essa injúria para o domingo. Domingo, dia de injúria, Gisela passou chorando, mal dormiu ou dormiu muito, não sei, não falei sobre isso com ela, apenas conversamos o enorme sentimento de perda que há nas coisas. Aquilo não foi só se despedir de um namorado, foi dar adeus a vida que viveu nos últimos tempos. É como se a gente morresse e chorasse o próprio luto antes de (ai, como eu odeio a superação) nascer de novo.

Da última vez que vi Gisela, olhei para aquela cara ainda com o semblante consumido do choro magoado da separação, recebi um abraço bom e depois, mais tarde, num desses silêncios-pausa de quando estávamos conversando, ela levantou os dedos e deitou-os sobre o decote da blusa e meio desolada disse uma coisa muito horrível como “ai, meu coração”. Não tive coragem de comentar a beleza daquele ato – verbalizar aquela dor que não é física, mas que acaba por se desdobrar naquilo, o órgão do pulso. Depois, perguntei à Lilya como ela estava com isso tudo e ela me disse que Gisela “estava longe”. Pelos próximos dias, a Gi vai sentir uma angústia repentina e decrescente ao entardecer. Hora da nuvem-negra, ela vai repetir enquanto quase tem uma parada respiratória. Depois, ela vai descobrir que ao tomar um banho quente nesta hora e esfregar a pele com uma bucha vegetal bem dura, a angústia se dissolvia e começava a sair de cima dela. Por um tempo também ela terá medo de freqüentar os mesmo lugares de antes, os cinemas e bares, com medo de topar com Cadu (e uma eventual outra mulher que ele haveria de experimentar...), medo de andar na rua sozinha, medo de falar o nome dele em voz alta, ou de se esquecer, de repente e para sempre, o número do telefone da casa dele. Sei (sabemos) que em pouco tempo essa angústia irá desaparecer e depois que um pouco de tempo passar, ela se lembrará da existência de Cadu com pouca freqüência, com frases, objetos perdidos, fotografias, aquela música que eventualmente tocava no rádio e ele gostava muito. Então, Gisela há de rir de si quando falhar ao se lembrar do rosto, da voz e até mesmo do nome completo de Cadu. As mulheres não se esquecem com tanta freqüência, mas elas normalmente superam a história (superam, de novo, que inferno) antes que a Histórias as supere. De Cadu, porém, recebi um vestido escuro e florido que pertence à Gisela e que ela esqueceu na casa dele. Senti compaixão e resolvi lavá-lo para que no tecido não reste coisa alguma dos dedos de Cadu, do perfume da casa de Cadu, meu deus.

Digo, não é à toa, Gisela e Lilya têm os pés calejados desse terreno do fim. Não só as duas, mas principalmente Lena, a irmã mais velha, Lilya já me contou a respeito do pai das três. Falou que quando ele e a segunda mulher (o trio de cromossomos XX é fruto da primeira mulher de todas) se divorciaram, foi a Lena quem ajudou a encontrar uma casa, tratar do aluguel e dos móveis, já que a ex, aquela puta, entre a depressão e os maus-hábitos alcoólicos do pai, acabara por levar tudo sem nem ter um advogado direito. Lena escolheu um bom lugar, um apartamento de primeiro andar, subvalorizado, numa região que fora chique em tempo áureos, numa rua de velhos, num bairro de árvores, lugar bem parecido ao sonho passado de Cadu e Gisela, temos que admitir. Pois, então, passaram-se três meses daquele divórcio difícil, palhaçada, e o pai já os recebia para um almoço de domingo. Nesta época, Lena já era casada e grávida celebrada de seis meses e duas semanas, cercada de mimos e roupinhas de bebê pelo futuro avô, carinhoso e amável, aguardavam o primeiro de uma boa linhagem de netos, já que o homem tinha cinco filhos, três desta, dois da outra, e isso sim, isso sim era constituir família. Então, numa terça-feira qualquer, Lena passou ali para deixar no armário uns lençóis que havia comprado (até eles, a ex-maldita...) e ao entrar no quarto do pai, encontrou um par de sapatos de mulher à beirada da cama. O chuveiro estava ligado e a porta estava fechada. Lena, puta, perguntou o que era aquilo. O pai ficou sem graça, sim, enquanto os filhos ainda estavam sem chão, ele arrumara mais uma mulher onde cravar os dentes.

Então, eu me lembro de você no meu sofá. Você falando que ainda tem medo de dormir por causa do divórcio dos seus pais, malas feitas à noite. Aquela briga que quebrou o dente do seu irmão mais novo ficou na minha mente, num resquício de você falando de como era triste, de como foi difícil superar aquilo, e talvez você nem tenha superado direito, seu fraco, ainda tem essa úlcera no estômago e uns remédios para dormir de vez em quando, principalmente aos domingos, com os cigarros cubanos e um monte de sambas, e um monte de palavras que ainda não foram escritas. Você me disse que viver testava sua paciência, eu disse que o abandono era uma palavra legitimamente espanhola enquanto você insiste em estudar alemão, francês e o piano, seu grande erudito. É, querido, talvez nós nunca esqueceremos. Eu respeito o nada, este grande Nada que você ama, seu infinito guloso, mas você sabe, nem aquela planta viveu para sempre na minha mão, nem aquele casal que a gente achou que teria filhos cumpriu uma reta. Agora olho a planta, o vestido de Gisela, olho o sofá em que conversamos naquela noite. Penso em pegar o telefone e avisar meu ex depois de quase três anos sobre o estado de saúde da planta dele. É, talvez eu devesse avisar a ele. Talvez ele já se esqueceu dessa planta mesmo, para sempre. Mas eu nunca sei o que fazer com as coisas quando elas morrem.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Bienvenido



Jean-Luc, repito, você é sempre bem recebido em minha casa. Lembro-me com freqüência de uma pequena cena, de quando o interfone tocou e o porteiro disse o seu nome, o pessoal já estava aqui bebendo e conversando desde sete da noite (já eram por volta das nove? – tempo turvo), eu falei, pode subir, e quando eu abri a porta, vi você, parado, com uma garrafa de vinho na mão e um jornal dobrado ao meio debaixo do braço. Regalito, você disse ao estendê-lo. Era o exemplar do Clarín do dia cinco de junho que você trouxe para mim de Buenos Aires. Em folheá-lo posteriormente, não resisti em olhar a previsão do tempo. No verso da primeira página, encontrei o dia ensolarado: um sol redondo e amarelo com pequenos raios em volta, sol bem parecido com o centro da bandeira argentina; temperatura mínima, sete graus, máxima, dezoito, mas talvez isso seja uma mentira. Umidade: setenta e nove porcento. Depois, você me disse, que num dia desses (quem sabe o próprio dia do jornal) foi levado por um argentino que se chamava Santiago para um bar minúsculo com setenta pessoas espremidas lá dentro, onde as prateleiras não eram espanadas desde mil novecentos e desde-então, e que eles começaram a cantar uma espécie de tango improvisado ali num período da noite, mas não entendi muito bem por que nesta hora eu estava na cozinha, preparando o jantar para servir a vocês. Não sei – talvez cada palavra em cada carta que te escrevo seja uma ode à você, ou um elogio ao tempo, um elogio à nossas conversas. Mas eu me frustro, você sempre me manda ir com calma, Jean-Luc, tentar não enlouquecer tanto diante deste cotidiano de coisas incríveis, mas eu continuo me precipitando e é assim que eu destruo as coisas. Talvez, destruir seja uma forma de suportar. Enfim, ultimamente, apesar das evidências (o CD do Bartók comprado em Bs. As., o jornal, uma blusa de frio que você me emprestou aquele dia no bar quando o Augusto começava a dar aquelas estranhas dicas de vida a vocês, rapazes e eu queria ir embora pra casa), só nos resta música e narrativa quando um acontecimento chega ao fim.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

morada



Dessa vez em que ficamos separados por um mês, eu estava num entardecendo com meu corpo cheio de sal e areia, e a gata da tia se enroscando nas minhas pernas. Eu esperava tomando cerveja na varanda de casa e ele ligou, o sinal ruim da distância. Disse que se esquecera de como eu era, de como era meu cheiro e meus olhos, que de repente sentira um desespero e precisava ouvir minha voz para se lembrar e mesmo assim não conseguia ter idéia: talvez como esquecer falas parado no centro do palco, pontuou. Ou como aqueles caras na guerra, que têm uma perna arrancada e não sentem dor, e eu achei bonito, disse que era uma falta tão, mas tão grande que nem se sentia mais.

Antes de ir dormir reencontrei álbum do casamento na cabeceira da cama, fotografias pequenas que um amigo havia feito com uma câmera analógica e rolos de filme preto e branco e de um colorido falso, opaco, embrutecido; uma festa pequena pra bastante gente, que durou caixas e caixas de cerveja das três da tarde até as três da manhã no quintal. A poeira se assenta e aquilo que antes eram cômodos vazios cheios buracos de outras pessoas, torna-se de repente a nossa morada.

terça-feira, 15 de junho de 2010

literatura comparada



Havia algo de estranho em tudo, algo de ancestral, aquilo dos poemas medievais, quando os eu líricos femininos (sempre escritos por um homem, dizem) cantavam “onde está o meu amigo? Quando volta o meu amigo?” para aquele que havia partido num navio (Ulisses de Penélope) enquanto ela esperava e falava à natureza da saudade – Saudade, já havia essa palavra espinhosa? Já se havia cunhado o conteúdo doído da casa vazia sem a voz do outro? Cidade vazia sem os cabelos do outro, cidade sem colo. Antes, amigo, essa palavra, Caio F. já havia narrado essas odisséias duplas e dúbias, dois amigos pela noite, dois amigos vivendo em cidades sem colo, e então um abria a porta do táxi para o outro entrar. Quando as coisas, a noite, tudo chega ao fim, uma rodoviária, um cheiro estranho e cinza de prédio antigo e despedida, para deixar-nos nesses cantos de saudade e de espera. Meu amigo, Hermes, do outro lado de um oceano, guarda o sabor doce de uma pêra.

(para Léo e Schiavo)

sábado, 12 de junho de 2010

fácil



Cesária não me deixa ficar em casa de dia, a não ser que eu ajude; e quando me canso, vou para o jardim ficar com os gatos entre as plantas cercadas de coisas daninhas. Uso um vestido rasgado, e às vezes um avental para não terminar de estragar a roupa velha.

À noite, me maquio olhando para um espelho qubrado e lá vou eu, moer os ossos dos dedos dos pés na rua. Quando está muito frio, te procuro em casa. Se você está, me dá de beber o vinho, que amolece minha carne, tornando-a mais macia aos seus dentes, mais fácil ao seu paladar.

terça-feira, 1 de junho de 2010

faltas



14 - É você, tenho certeza que é você, eu pensei, ao atravessar a rua, quando eu vi aquele homem se sentando no banco da praça como se esperasse alguém. E então entrei no ônibus que havia chegado. E agora faziam três semanas quase exatas que nos tínhamos cruzado na rua e conversado as onze da manhã por não mais que cinco minutos. Me lembrei então de como você gostava tanto do trabalho de Vera e eu disse que eu cuidara dela durante alguns meses, quando ela ficara doente. Pessoalmente, eu disse, acho que foi melhor do que fazer qualquer matéria com ela. Estudar qualquer coisa com ela, por que eu tinha acesso à biblioteca, e nós conversávamos muito – ela falava muito. Não falei nada dos vidros quebrados, não falei nada dos gritos mimados de Vera nem da casa afundando. Vera era imortal, quase acrescentei, meio assustada pelas circunstâncias, nada a derrubava do jeito que derrubavam as mocinhas mais jovens, eu, Katylenne, todas as outras.

15 – Nota de aula: A linguagem é a ausência da coisa: linguagem é sempre perda. O que foi perdido está perdido. O escritor porém pode inventar sobre aquilo, mas nunca poderá haver de volta o objeto perdido. O escritor, o indivíduo, o sujeito, ele é construído de lembranças e memória. Todos impalpáveis. Ele precisa voltar a isso. Ele se consola.

16 - Vejo sua camisa dependurada no cabide. Cheiro até o fundo um resto de suor.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

canil



A mãe dos filhotes havia morrido atropelada, ela disse, enquanto abotoava sozinha o vestido indiano comprado numa feira hippie qualquer, edificada numa rua há muitos anos, noutro domingo de sorvete e sol. O tecido era escuro – algo entre o cinza, o roxo, o marrom; e de certa forma, apesar de comprido e reto, aparentemente sóbrio, eu podia ver as curvas dos quadris e das coxas, enquanto os peitos, de tão pequenos, não cobravam sutiã por baixo. Me disse que já passara na casa de uma tia para buscar uma mamadeira que um priminho não usava mais, leite de vaca, teta destinada agora ao nascimento dos dentes de um cão. Colocara tudo na bolsa. Descemos as escadas e o sentimento da rua era ruim, domingo, os espaços vazios. O silêncio dentro dela – no ônibus – era ainda mais absurdo. Apertava as mãos, nervosa, como um pai em sala de parto.

Quando chegamos, estavam fazendo um churrasco na casa, com cerveja e fumaça de carne queimando. Ela ignorou a festa. Seguiu uma mulher, subiu as escadas, a música estava à altura máxima da surdez dos bêbados, seus pecados, gordura, corpos suados sem camisa. A casa parecia um labirinto, com dezenas de caminhos entre corredores e portas, construída no modo aleatório no qual família que cresce. Voltou desesperada. O bichinho não era muito grande, castanho, tinha mesmo cara de filhote, indefeso e órfão, chegava a ser idiota. Ela protegia suas orelhas com uma das mãos para que não se assustasse tanto com aquela música alta, pessoas malvadas, torturando cachorrinhos, aquele era último da ninhada; um havia morrido depois da mãe, outros dois, mais graciosos, mais felizes, recentemente adotados.

O ônibus, lá fora, no frio, demorou. O vira-lata tremia muito, apoiado nas coxas dela, sobre carne que eu lambera e mordera há menos de meia hora, eu podia ver, os olhinhos chorando um medo difícil. Quando entramos no ônibus, o trocador nos julgou, mas não disse nada, ela o levava no colo como um bebê e assim que o veículo começou a se movimentar pelas ruas mortas do domingo, o filhote adormeceu.

quinta-feira, 6 de maio de 2010



14 - Presenciar a dor que enfurecia as grávidas e fazia seus bebês nascerem, enxugar meio litro de sangue e sorrir ao ouvir o primeiro choro, que inferno, não quero ter filhos. Sentir o perfume que as outras moças usam para dormir, imaginando que estão perto de seus bons partidos. Limpar vômitos e latrinas, dar banhos de esponja, detectar mortos, fazer barbas, cortar unhas, colocar o uniforme, achar uma veia no braço de um homem cheio de queimaduras.

16 – Você não sai de casa? Das vezes que te vi sozinha na rua (longe dos olhos crus da sua família, longe da mão do meu noivo), tão poucas, você perguntou em todas se eu andava escrevendo. Sim, eu respondia, com os braços cheios de livros. Se seu irmão não fosse tão chato, eu estudaria isso, afirmei, mas vou me casar, estou passada para desejos. Que nada, ele disse, você sabe que não é assim, isso vai te perseguir pelo resto da sua vida.

17 – Por que ninguém faz nada com esse papel de parede mofado? Com essas prateleiras vazias? Aqui dentro as coisas brotam. Na minha casa tem um tapete rasgado, um buraco na parede, um armário sem porta, coisas que não funcionam direito e alergias a isso. Por que ninguém faz nada com essa moça que não toma banho?

18 – Clarissa me diz: menina, não faça isso. Ela é a única que sabe sobre você, meu amor bruto. Clarissa diz que já amou o próprio cunhado, como eu, mas que depois aquilo foi dissipando. Mas nunca deixou de amá-lo, apesar de ter preferido dar todo o amor ao marido. Ela tem poucos espelhos em casa. Muitas pérolas na caixa de jóias (quando eu fui me casar, eu carreguei no decote do vestido branco um colar de Clarissa, e nas orelhas, brincos que ela disse ter trago da Grécia), seus vestidos não tem rasgos nem defeitos, se ajustam ao seu ainda belo corpo, carregado de velhice. Na casa de Clarissa tem chá. Na casa de Clarissa tem café com açúcar.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

noiva




11- Nota de aula: Desterro, degredo, exílio, ocasionado pelo pecado original.

12- Quando eu comecei a namorar o seu irmão, agora meu noivo, você já namorava Camila, aquela jornalista mal comida (perdoe-me a expressão, não achei outra, se ela é a sua mulher, ela não pode ser mal comida). Ela sempre me teve aquele nariz arrebitado de cachorro de pedigree, aquela cara enjoada, eu nunca entendi bem. Você, mesmo depois de ir morar com ela, nunca usou aliança nem tratou-a como esposa. Era sempre "minha namorada". O tempo passa. Quando vou me casar com o seu irmão ao modo que sua mãe sempre quis que os filhos casassem formalmente, Camila me acompanhou durante meu dia de noiva e só falamos de bobagens ilustradas nas revistas femininas. Camila ficou me olhando enquanto via a minha pele sedosa sendo coberta pelas camadas brancas do vestido de noiva.

13- Camila e Katyllene são muito parecidas, tanto em seus métodos quanto em sua maneira lânguida (deus, como eu odeio essa palavra) de prestar atenção nas coisas. Há suas diferenças. O pescoço de Camila cheira a rosas e nós duas usamos o mesmo hidratante em toda a pele depois do banho. Katyllene fede a merda, a sebo, sujeira, cebola, mijo, esgoto.

terça-feira, 27 de abril de 2010

quinta-feira, 22 de abril de 2010

um noivo



7 – Na maior parte do tempo eu esquecia que tinha um noivo e o que me lembrava eram coisas simples, como um bolo de cartas, ou quando eu olhava para a minha mão. A aliança fina no dedo fino, quando eu cheguei depois das férias, as meninas viram logo que eu deixei as malas no umbral da porta e então tiveram que estourar champanhe e cobrir minha cabeça com tule branco do forro de um vestido de uma de elas. Ficamos bêbadas, elas mais que eu, meu deus, como ficam insuportáveis quando ficam bêbadas, como falam alto e me abraçam justo quando eu não queria falar, apenas beber algo quentinho e descansar da dor nas costas da viagem.

8 – Katyllene diz que em breve também vai se casar com seu Jesus Cristo amoroso. Vera nos ignora e julga.

9 – Meu noivo costumava escrever mais, muito mais, agora mandava cartas pequenas e iguais uma às outras – saudade, mal espero, amo, adoro, flores, olhos, cheiro – de uma página só. Não reclamo, apenas constato, já que escrevo muito menos do que ele.

10 – Casar-se por conveniência é um dos grandes objetivos das mulheres. Se apaixonar e amar, meu Deus, não há coisa que dê mais trabalho. Amar, talvez, as camisas de um homem seja melhor, e passá-las com o esmero que eu usaria para amar alguém.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Mas como é que alguém pode se chamar Maricota?



Eu quero plantar uma árvore com o seu nome por que eu gosto da sua voz, das suas mãos, do seu cabelo, dos seus sapatos e meias. Eu gosto da sua mãe; eu gosto dos vestidos que ela faz pra você usar, gosto dos seus pés descalços. Eu gosto até mesmo da sua tristeza por que ela deixa seus olhos opacos e me dá vontade de querer muito ver o que tem dentro – atravessar depois dos óculos grossos uma pupila preta e a outra pupila preta envolta pela íris bonita, imaginar o que tem dentro disso, uma cidade que cheira a maisena, se criam muitos bichos, se misturam sotaques nas fronteiras, se vai em busca de um sertão de dentro, bem de dentro, por que a gente sabe que essa rachadura na terra colorida é o pé da árvore que eu quero plantar com o seu nome para depois escrever cada letra no tronco dela, senhora.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

ambulâncias



4 - As ambulâncias, quando levam um doente grave de volta para casa, se locomovem de uma maneira excepcionalmente vagarosa. A sirene, silenciada, restara na alerta de um vestígio de luz vermelha girando enquanto ainda havia sol. Eu estava seguindo um desses veículos vagarosos às cinco e meia de uma tarde engarrafada, com carros buzinando atrás. Eles que buzinavam não percebiam o que estava acontecendo. Eu estava levando Vera para morrer em casa.

5 - Olho para Clarissa e vejo tudo que quero ser um dia. Talvez, por hábitos solares do bom humor aos quais sigo inconscientemente e de maneira devota, o amor ao marido, um vestir-se bem mesmo com essa idade desleixada da velhice, aposentada e feliz, de quem soube o que queria e perseguiu isso adiante. Clarissa recusa a beleza que ela acha que não tem enquanto eu desejo envelhecer linda como ela.

6 - Eu me lembrava de outras ambulâncias deixando velhinhos em macas na porta de suas casas, com seus lençóis brancos e seus respiradores artificiais. Enfermeiros arrastavam cadeiras de rodas. Um bairro de velhinhos, no domingo eles saem em passos curtos, desafiando a loucura em roupa limpa, empunhando o cheiro dos jornais recém impressos e do pão tão prontamente assado.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Quasimodo





2- Há alguns anos também ajudei Vera, a escritora sapatão, que me ensinou três línguas. Na primeira, eu viajava pelo mundo e atendia ao telefone. Na segunda, escrevi seu inventário. A terceira, porém, era a língua do amor e nós nos forçávamos a falá-la todo o tempo, com a dificuldade de quem balbucia. Eu escondi as jóias de Vera do holocausto quando protelaram sua morte com a medicina,enquanto a moribunda tratava de esmaecer.

3- "Por que Quasimodo é o nome de tudo aquilo que desaba".

terça-feira, 6 de abril de 2010

.

eu vi, eu vi uma casa afundar na terra



a terra engolir uma casa

sexta-feira, 2 de abril de 2010

.


Estas são as pernas, os lábios, os pés. Por baixo, o mesmo osso, por cima, se estende esse manto gasto e envelhecido, que não me parece tão horrendo já que também alcanço a mesma idade. Da primeira vez numa cama, você se lembra, pensei que íamos chorar, mas agora há uma espécie de pó sobre todas as coisas que nos impede qualquer reconhecimento. Nossos cheiros tinham nome. Uma rua, o cenário de um amor perdido. Nem as células da nossa pele são as mesmas, as antigas, sensíveis ao seu tato, táteis à nossa sensibilidade, de tantas noites em que nos seguramos acima de grandes espaços ocos. Este corpo não é o que te sentiu. É a mesma árvore, mas com o tempo – contado em anos desde a data gravada dentro de uma aliança de ouro – as folhas caíram e novas cresceram, enquanto as antigas ainda devem se decompor em algum lugar onde sequer sabemos onde fica.

quarta-feira, 31 de março de 2010

.


Talvez a maneira estranha em que ele apertou meu ombro duas vezes quando passou na fileira por trás de mim no auditório, sem me olhar, sem sorrir. Não foi lascivo, mas confirmou alguma coisa que eu suspeitava sem ousar. Gosto mudo. Talvez desse linha a um caso de amor verbal, ou nos levasse à carne sem dizer uma palavra. A mão dele tinha cheiro de cigarro e encostou na minha pele por poucos centímetros, o pedaço de epiderme que não era coberto pela alça grossa do vestido.

sábado, 27 de março de 2010

Marina e o Mangue



I

Ela estava falando que não era assim difícil acordar cedo, que era só abrir a janela que o filho despertava, o filho acordava sempre alegre. Talvez por que como ela o filho era uma criatura da manhã e do dia. Citou, inclusive, que lera numa revista que era bom dar o jantar cedo para as crianças: no dia seguinte a fome seria um motivo bom para que elas acordassem sozinhas. Vicente sorriu, dizendo que com ele nada daquilo adiantava. “Quando você tiver filhos, você vai ver como as coisas ficam”, Marina comentou, “a gente vive em função deles”. Ela mexeu de novo no suco de melancia, Vicente pensou em sua esposa falando que suco de melancia engordava, algo índice glicêmico ou coisa parecida, devia ter lido em uma revista também. “Você mora aqui perto?”, Marina perguntou sem levantar o rosto. Não olhava para ele, tinha nojo dele. “Lourdes?”, ele perguntou. “É”. “Moro”. Marina levantou a cabeça para o alto, sem passar os olhos por ele, e depois abaixou o rosto de novo. “A grana que ele me dá é boa”, disse. “Eu poderia morar aqui, mas não gosto. Eu não trabalho por perto e esse bairro é tão... Limpo... Estranho. Meu filho não ia gostar, ele tem os amiguinhos dele lá no prédio, os vizinhos”. “E onde você mora?”, Vicente perguntou. “Num apartamento pequeno. São Pedro, quatro quarteirões da Contorno. É bom... Os meninos... Eles jogam futebol na garagem. A síndica fica furiosa. Eu estive até pensando em estudar, sei lá, fazer alguma coisa com meu tempo. Eu só vou à academia, cuido da casa, do meu Dani...”

O almoço estava demorando. Já haviam reclamado duas vezes com a garçonete transtornada, a moça com uma cara triste, as pernas finas, carregando pratos copos e cinzeiros pelas mesas na calçada e dentro do restaurante cheio. Vicente se adiantou, tocando o rosto de Marina. As cicatrizes do rosto eram mais brandas, imperceptíveis, como as velhas marcas no braço, um ocasional limão ao sol. Ainda eram feias. “Dá pra melhorar isso sem fazer cirurgia, você sabe?”, ele disse. Num gesto agressivo Marina tirou a mão dele dali e se preparou para se levantar e quem sabe ir embora. Vicente pensou que ela ia morder seus dedos. O faria se a garçonete inábil não houvesse chegado com os pratos cheios – Marina derrubaria toda a comida. Apenas olhou para Vicente enquanto ele abaixava os olhos e tentava sorrir. Marina pegou os talheres e, rancorosa e muda, começou a comer.

II

Muitas vezes havia a sensação de que o quarto casal seria também uma sala de visitas, foi a última coisa que pensou antes de dormir e logo depois de enfiar o corpo dormente entre lençóis caros que ganhara já não sabia de quem. Coisa da mulher, ela abriu, ela agradeceu os presentes, ela escreveu cartões brancos em envelopes brancos de alta gramatura e enviou pelo correio. Ainda não sabiam muito um do outro, aquela estranheza de morar nas mesmas paredes pela primeira vez – antes, eram apenas fins de semana entrecortados por cervejas e trabalho – exigências na família, a vontade de ficar junto. A esposa, a pele inacreditavelmente macia da esposa, um objeto de luxo. Ansiava, estranhamente, ver aquela pele ficando velha e flácida, com manchas, para que não fosse mais um modelo de esposa, aquela puta em prontidão todo o tempo. Gostava de alguns maus-cheiros dela, como sob as axilas depois de um dia quente de trabalho, ou o hálito de uma leve ressaca ao acordar numa manhã de sábado depois da antecedente sexta-feira cheia de risadas. A mulher mais bonita da cidade para o homem mais ambicioso.

Ele ficava esperando agora que a mulher reclamasse de alguma coisa, mas ela não fazia nada. Estava tão absolutamente feliz que ele tinha vontade de brigar com ela – destruir a vida dela, de bater nela. Era a maneira em que ela estacionava bem o carro, a maneira em que ela pintava o cabelo, a maneira que ela depilava a virilha, a maneira em que ela falava da lua de mel na praia para as amigas ao telefone depois de escolher as flores e alugar os talheres de prata para o casamento. Ela e as amigas – parecia uma vingança, uma reunião de bruxas, tinham o universo delas e eram tão felizes juntas que, o que era aquilo que sentia? Era inveja ou ciúmes, não sabia bem a diferença, não eram católicos, não seguiam religião alguma que não fosse aquele leve e automática religião do cotidiano. Pensar a lua de mel – ele não gostara tanto. Nunca foi de gostar de praia, disse, por ter nascido em uma praia, mas tolerou o sol e chegou a entrar no mar como se o desafiasse, furando ondas bravas e engolindo forçadamente sua água. Eram inimigos, ele e o mar, ele soube desde quando quase se afogara pela primeira vez, de pequeno. Férias tristes, Vicente só conseguiu aceitar a escolha que fizera de ficar com aquela mulher, justo aquela mulher fina, delicada, silenciosa, depois que colocou de novo os pés na cidade e prometeu de novo que nunca nunca mais veria o mar em sua vida.

Ele gostava de presenteá-la – um anel, um par de sapatos número 36 e inclusive um filhote vira-lata que não crescera quase nada e que se escondia em baixo da cama todas as vezes que tinha foguete e trovão. A beleza do mundo era intolerável de tão correta.

III

O nome o perseguiu por dias inteiros. Marina. A esposa ficara preocupada com ele, dormia mal, estava estranhamente agitado. O fato de que a esposa podia deixá-lo o aterrorizava e quando ele tentava conversar isso com ela, ela ria, achava tolice, prometia, Vicente, eu nunca vou te deixar. Você nunca me deu um motivo pra me deixar, pára com isso. E ele se sentia incomodado todas as vezes em que sonhava com a cidade, os pais, ou qualquer coisa que não via há mais de quinze anos. Não sabia de nada deles, talvez muitos tivessem morrido. Você tem vergonha de onde nasceu? A esposa perguntara tantas vezes. Qual foi o problema? Enjoou das casas, da escola, das bananeiras, da bicicleta, das noites muito frias, da umidade que não passava, dos dias muito quentes, da preguiça, das fachadas indestrutíveis de casas muito antigas, das pedras da rua que continuavam sendo pedra, dos muros caiados que continuavam sendo muro; e tinha certeza de que aquelas pessoas continuavam as mesmas, algumas mortas – não, todas mortas – que aquelas pedras jamais seriam asfalto. Seriam as mesmas vias e as mesmas casas, o mesmo mar sem trégua, das missas, os mesmos doces, os almoços, os peixes, dos barcos, do descaso, da obviedade, das putas que se recolhiam durante o dia aparecendo fora de suas casas em horários mortos evitando infortúnios, uma fora apedrejada, bíblica, do cabelo cacheado de Marina sempre úmido e salgado como se ela tivesse acabado de tomar banho de mar todo o tempo, de suas calcinhas de algodão amarelado, gasto, das tormentas, nada tinha uma aparência devidamente limpa, devidamente arrumada, da estampa florida dos seus vestidos, dos decotes exageradamente chatos, das promiscuidades que a irmã mais nova estava aprendendo, dos livros que não mudavam de estante, de caranguejo no mangue, refeição apressada e tardia de algum dia, dos azulejos. E Marina, Marina sentada no degrau em frente à casa, Marina namorada que jurara que não deixaria por nada no mundo.

Os dois estavam juntando dinheiro para ir para alguma faculdade. Vicente, enojado, se inscrevera em várias cidades grandes de vários estados, de preferência, que fosse bem longe da costa e bem dentro da terra, longe do cheiro salgado da onda na areia impertinente, e suas conchas. Direito. Marina seguiu seu passo. Os pais deles não queriam que eles fossem embora. Ele tinha as melhores notas da cidade e Marina já ganhara o posto de moça mais bonita. Na festa junina, era a noiva. Aquilo – a moça mais bonita para o rapaz mais ambicioso. Marina passou em uma faculdade, ele passou em todas. Disse que iria com ela.
Mas Marina não quis ir. Ela chegou a chorar umas lágrimas submissas – não gritou, não protestou, não fez nada – enquanto brigaram numa ponte em cima do rio em cima do mangue. Madeira podre, enquanto ela andava caiu com o rosto no chão e nas raízes disformes das plantas. Sujou a areia de um sangue amarelado, dissolvido em umidade. Chorou muito. Tentou ajudá-la, mas ela disse que era para Vicente ir mesmo, que ela não ia nunca mais ver a cara dele na vida.

Quando Vicente foi embora, aquelas feridas ainda não tinham se tornado cicatrizes. Ele precisava de um caminho seguro, um céu limpo, umas sombras confiáveis, nuvens que não se tornassem nunca chuva. Tinha a sensação de que fizera todo o caminho para longe do mar descalço num deserto de areia, conchas, caranguejos e raízes secas que saltavam de dentro do sal.

IV

Reencontrara Marina por acaso, sem querer contar quantos anos depois. Foi numa dessas chuvas sem trégua há uma semana, estavam próximos ao dia de finados e já havia uma preparação para o natal. Ele caminhava em direção ao estacionamento levando consigo um guarda-chuva quebrado. A chuva provava aos homens que eles ainda faziam parte da natureza, lera isso em alguma revista também. As barras das calças molhadas e ele estava com frio, a roupa, aquele artigo que provava como eram fraquinhos, tecido para esquentar uma pele quase sem pêlos, como aquilo era ridículo.

Viu Marina parada no vão de uma padaria. Parou, eles se haviam olhado daquela maneira na qual era impossível fingir que ignorara uma pessoa. Demorou a se lembrar dela. Continuava morena (perguntou-se se ela ainda tinha as marcas de biquíni de antes), os cabelos cacheados presos, uma roupa de ginástica, um saco de pão. Ela sorriu. Viu as marcas no rosto dela e os olhos grandes, puxados. Se abraçaram e a chuva se transformou em remorso.

Contou que morava ali há seis anos – como nunca tinham se encontrado antes? Que tinha um filho. Se casara, mas se divorciara há poucos meses. Parecia excelente. Saudável. A calça de lycra, o tênis de no mínimo quinhentos paus o par, convidou-a para tomar um café ali, nos copos de vidro enquanto a chuva parava. Era a mesma Marina com os pés na lama do mangue, a mesma que via pôr-do-sol, o mesmo otimismo, a mesma inocência, só que em outro contexto. Mudara. Na verdade, ele não soube. Conversaram pouco, ela precisava buscar o menino na escola. Trocaram telefones e combinaram de almoçar um dia desses. Marina com aquelas cicatrizes no rosto, parecia que ela tinha sido ferida por um bicho muitas vezes maior do que ela.

sexta-feira, 26 de março de 2010

terça-feira, 23 de março de 2010

Medéia

;


Nesse tempo, eu já fui Medéia, aquela que não podia trair a própria terra.
Joguei contra - aprovo o melhor, me aplico ao pior.
Devoro os meus filhos.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Perto da Estação Central




Quanto vale cada azulejo? Que calor – é assim que eu confio na previsão do tempo, pelos joelhos dela. E mais tarde, então, que frio. Um casaco, um abraço, a fome. A demolição de uma casa, interrompida no domingo, vemos os restos dela se desfazendo no chão em cores de paredes e ladrilhos. Vai chover. O cheiro de cimento molhado, restos de terra e vida. Domingo, chamego, sushi, a casa ficou uma bagunça... A cama. A nossa.

“Mas será que você não me ouviu?”, seguro o braço dela. “O ouro serve apenas às mulheres casadas, mãe ausente, aos sapatos de salto”. Nós não. “Você precisa se cuidar melhor”, eu disse a ela, descabelada, limpando o vidro opaco da cozinha com um pedaço de jornal, contra ele o céu nublado. Você toma banho e limpa os restos grudentos de sexo que ainda há em você. Ouvir de longe o metrô passando, de tempo em tempo, contando, para nos lembrar há quanto tempo estamos aqui e por quanto tempo... “vamos ficar aqui?”. “Eu preciso me vestir, o último é às onze e há tempos não tem luz nenhum saindo daquela janelinha ali, olha”, “onde?”, “aqui”.

Ainda esperaremos que o relógio quebre, que os insetos corrompam os móveis, que a chuva, essa, dos seus joelhos e impressões, maltrate os tijolos. “André você ainda tá aí? Você ainda tá falando comigo?” Não, esquece o que eu disse. Dorme hoje aqui, comigo, nessa cama desarrumada. Nenhum trem vai nos acordar de novo, do modo abrupto no qual eu te maltrato (os hematomas, hematomas em volta dos mamilos) durante os dias.




(a foto é da Letícia, uma amiga, vítima de uma experiência amadora e longa demais que fiz com uma Olympus Trip 35 e filme preto e branco. Ainda tenho uns rolos a revelar, mas não me animo, por que fotografia é uma coisa muito cega e já me basta a miopia grave que herdei do meu avô)

terça-feira, 16 de março de 2010

dias amenos #10



Memória por extenso é náusea má, rubor, sua curva. É cronômetro, flor levando três dias para murchar, a cadavérica chave do portão que range. Olhar pelo olho do outro, andando de costas para a vida.

quinta-feira, 11 de março de 2010

dias amenos #9



Útero, a palavra ressalta algo que minha mãe nunca teve. Ela gerava os filhos dentro de outros órgãos – um pulmão, o estômago, um rim, o baço, o apêndice. Nasci deste último inútil fragmento de seu corpo e vim pequena, com menos de sete meses. Não agüentei viver no amargor de dentro daquela mulher. E quase não vivi – apêndice improfícuo, inflamou de me ter lá dentro e ele saiu comigo do ventre magro de minha mãe, e nunca mais fez parte dela.

Mamãe usava anéis estreitos para dedos raquíticos. O cabelo sem corte não crescia além dos ombros, era deixado sempre preso e justo. Ela deixava o rádio ligado o dia todo, mas nunca escutou música. Ela nunca olhou de uma janela simplesmente por olhar. Nunca pintou as unhas, nunca plantou flores, nunca quis sair dali.

terça-feira, 9 de março de 2010

Dias amenos #8



Depois desses problemas que tivemos com o apartamento – a nossa quarta tentativa – resolvemos viver numa casa numa rua de sombra, que derrubava suas árvores quando chovia e a luz acabava, fazendo que nós nos sentássemos no escuro e conversássemos por horas, resultando em epifanias, brigas ou nas melhores noites de sono à partir das nove e meia da noite na minha vida e nas piores insônias de João, que insistia em continuar lendo com uma lanterna azul à pilha ligada que segurava com uma das mãos ou escrevendo com letra miúda, errando as linhas do caderno.

Sem saber o motivo, com ele eu dormia bem, eu podia ver de novo a sombra na janela de uma árvore que havia do lado de fora da primeira casa que ocupei durante a minha vida. Eu me sentia pequena de novo, e havia um conforto bom em ser pequena na hora de dormir.

Ao ter todos os móveis e caixas cheias de objetos, e armários com roupas dentro de casa, percebi que eu havia edificado um mundo a mais do que eu imaginava ter construído naqueles anos ruins, naqueles anos que pareceram não ter servido a nada, além das injúrias que me causaram, e, olhando para aquilo, me senti muito confusa – como se tivesse acabado de despertar de um sono ruim que, se olhado por dentro, não parecia mais ter algum sentido.

Aquilo, para o resto do mundo, enfim, era uma vida feita.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

As Crianças



O fenômeno ocorreria com todos que deixavam a escola após seu último ano, aquele que passava como uma dormência torpe nos dedos das mãos, provocando a sensação verdadeira de se estar morrendo de cansaço e de uma liberdade absoluta diante do fato de que todas as verdades que os jesuítas lambiam não tinham sustento. Antes, como crianças (ainda o eram, apesar de estarem quase todos com dezoito anos), viviam sob a obesa lei frígida, a lei bem comportada, a lei relativa, a lei errada, mil e trezentos alunos, as crianças eram sempre vistas como uma massa só. Era o enxame, não as abelhas. Sorriam para as fotos, cada rostinho numerado, uniformizado, registro formal para a posteridade e a falta de compreensão daquilo que os impedia de falar. Com o fim, entretanto, deixariam de usar aqueles uniformes injustos em favor de um armário, roupas e sapatos escolhidos como o espelho de dentro para fora. Esses sorrisos caluniosos de fotos da turma posteriormente virariam choros em frente a cabines de diretores, chacotas, agressões, abusos sexuais, narizes quebrados, suicídios. Medos, obrigações, terrorismo: decidir-se rápido, promover-se, ser bonito, aprovar-se, ser feliz, nunca sofrer, aprender com aquilo. Manter-se firme, ser macho, ser moça boa de família. Não gritar, não descer, sustentar, sorrir. Ser igual. Ser um exemplo. Não vomitar.

Enfim, os que sobrevivem se formam e são tirados do aquário. Parece que sem sair de casa, se mudam de uma cidade para outra, a primeira, uma cidade chata, impiedosa, egoísta, segregadora, a outra, uma cidade aberta, brilhante, sedutora. Um tio ou uma tia que passaram pelo mesmo processo há três décadas contam o segredo e pedem para que eles se preparem para os melhores anos de suas vidas. De repente estamos na universidade, depois bêbados numa calourada, depois estudando algo muito importante que sempre fora deixado de lado na escola numa biblioteca silenciosa, depois estamos lindos, numa boate, e finalmente em uma festa, quando acaba a cerveja. Não apenas estamos bebendo como na verdade bebemos há mais de quatro anos, sendo o álcool algo velado, marginal e aborrecidamente perigoso. Quando está tudo pronto para rolar um bacanal, alguém dita o telefone de um lugar que entrega bebidas, cachorro quente e cocaína. Era só pedir pela Vera, e eles diziam quanto vocês querem? Tinham todos sede, a casa estava vazia e era uma quinta-feira. O dono daquilo era um amigo meu, assumido gay desde os seis anos de idade, um dos rapazes mais bonitos que eu já havia visto na minha vida. Desesperara os pais por um longo tempo com suas crises histéricas, seus cílios compridos, seus desaparecimentos, sua sinceridade. Agora ele apenas coexistia feliz com eles depois da crise, e às vezes ainda conseguiam fazer coisas juntos, como o modelo excelente de uma família – compras de supermercado, passeios com o cachorro, e, de vez em quando, até uma pequena viagem para algum lugar bonito.

Eu disse a esse meu amigo, Mateus, que eu estava cansada e que precisava dormir um pouco. Minha cabeça estava estourando, uma caloura exausta de tanta coisa. Ele, sentado na beira da piscina, com um cigarro na mão e o telefone na outra disse que eu podia ficar sentir à vontade, subir e tirar uma sonequinha na cama dele. Outro rapaz gritou um eu também quero bem histérico e eu ri enquanto entrava. Era uma casa grande e às vezes tenebrosa, ampla e escura demais. Havia um par de sapatos de mulher diante do sofá da sala do andar debaixo. Subi as escadas e eu sabia que o primeiro quarto à direita era do Mateus. Abri a porta, entrei, acendi a luz. Mateus estudava artes e trabalhava com fotografia. Diante de mim eu vi o mural estupendo que eu adorava, cheio de fotos tiradas com os mais diversos tipos de câmeras analógicas que estavam posicionadas lindíssimas em cima da escrivaninha, Lomo, Olympus Trip 35, Polaroid. Um grande investimento. Fui olhando as fotos ali, prédios vistos de uma varanda, um homem nu, um rapaz e uma menina tomando chuva, cabelos compridos, cabelos curtos, nuvens, um pedaço do corcovado. E então, uma fotografia de Mateus com um rosto que eu conhecia, um rapaz alto, de cabelos claros, olhos apertados e sorriso grande.

Olhei de perto para ver se era mesmo ele. O Bernardo havia estudado comigo durante todo o ensino fundamental e médio. Ele andava só com um grupo restrito e agradável de pessoas e nós saíamos de vez em quando para fazer uns programas risonhos, como cinema em grupo para depois comer bobagem e tomar refrigerante. Uns chamavam ele e alguns outros de bicha, pelo jeito mimoso em que conversavam e outros detalhes delicados. Alguns eu sabia que tinham assumido logo após a formatura, outros arrumaram namoradas, mas na verdade aquele assunto hetero/homo me irritava muito por que era sempre muito cheio de preconceitos e zombaria num corredor de colégio. Agora ele aparecia ali, não só naquela, mas em várias fotografias que ocupavam um canto especial do mural. Bernardo por trás de um vidro chuvoso. Bernardo diante do corcovado, Bernardo sentado na praia, Bernardo de óculos escuros, Bernardo fazendo carinho num enorme cachorro. Meus pais conheciam os pais deles e eu me lembro de um dia em que disseram que o filho era afeminado. Afeminado? Afeminado não, sensível, ele disse enquanto manuseava o uísque e traía a mulher com a secretária, engravidava a ascensorista e pagava em dinheiro pelo silêncio. Vai se casar com uma moça bonita da mesma classe social que ele, ter filhos bonitos e se possível de olhos azuis, viverá numa casa rica e de paredes em tom pastel.

Peguei uma das fotografias, desci as escadas e fui direto para o Mateus. Interrompi uma gargalhada para perguntar se aquele cara era mesmo o Bernardo. “O Bernardo?”, ele pareceu impressionado por eu não saber, “é o Bê, meu namorado, sua mongol!”. Riu. “E onde ele está agora?”, perguntei, sem acreditar. Eu estava feliz com a notícia, mas além de tudo, impressionada como a mentira dos anos anteriores havia mudado completamente, uma comprovação de que eu havia vivido meus anos colegiais na mais profunda e dolorosa mentira, numa espécie de nazismo não declarado. Nenhuma chacota que jogavam para cima dele parecia agora ser a coisa poderosa que fora, a humilhação, parecia na verdade uma grande babaquice. Era como se nós não estivéssemos falando de nós mesmos. “Ele viajou para o interior, com a família dele”, Mateus tirou o celular do bolso e me mostrou o calendário com uma terça-feira marcada. “Já passou de meia noite”, ele disse com felicidade, “agora faltam cinco dias”. Um amigo bêbado dele riu, disse que a casa ia pegar fogo quando o Bê voltasse. Eu sorri.

Quatro dias depois, numa tarde de muito calor, eu estava saindo do trabalho e sendo chamada por uma colega para tomar um sorvete. Quando desci os três degraus diante do prédio do estúdio, vi passando na calçada um rapaz alto, de cabelos claros, de olhos apertados e pequenos. Estava de blusa azul marinho, short vermelho e um daqueles tênis sem cadarço que os moderninhos gostam de usar. Andava muito rápido. Tive a impressão de que ele estava vestido daquele jeito dentro de casa e, numa situação urgente, calçou os tênis e saiu para fazer o que tinha de fazer de tão importante na rua. Estava bonito e eu tive certeza que era ele, um Bernardo menos pálido e mais feliz, fora de um lugar que por anos servira para nos educar numa pedagogia muito errada, que nos fizera tanto mal.