quinta-feira, 23 de junho de 2011

Boneca de Corda (Conto premiado no II Prêmio de Literatura da Fumec!)

Oi gente!
No meio desse fim de semestre louco venho (finalmente) postar aqui, como prometido, o conto que ficou classificado em primeiro lugar no prêmio da Fumec desse ano. Meu continho e mais sete contos de outros escritores foram publicados em um livro - "Da Palavra a Literatura: Narrativas Contemporâneas", lançado na universidade Fumec na semana passada. Enfim, obrigadíssima a todos meus queridos que foram, e lá vem o conto:



BONECA DE CORDA
(para Paula Menin)

Fui revê-la por acaso, quando meu primo Nuno me levou ao concerto de uma pianista que estudava com ele, e surpreendi-me quando vi subir ao palco a própria Cristina Argerich, que aplaudi de pé depois de uma sequência de arrepios brutais durante a execução da sonata nº 23 de Beethoven, a Appassionata. Nuno me puxou através das cadeiras do teatro, me arrastando por um monte de pernas no carpete vermelho do chão do conservatório, indo pelas escadas e pelo hall de mármore, onde Cristina depois apareceria – com o rosto exausto, meio confusa, porém sempre alegre – para receber cumprimentos de alguns conhecidos que a esperavam para uma confraternização pós-concerto.

Recebeu-me com um abraço, e fiquei feliz ao ver que ela ainda se lembrava de mim. Eu a havia conhecido fazia três anos, quando ainda éramos calouras e tomávamos o mesmo ônibus para ir à faculdade. Eu estudava jornalismo, ela fazia música. No seu segundo ano de curso, ganhou (por ter a idade certa, passar numa bateria de provas e possuir cartas de recomendação de professores importantíssimos) um ano de estudos em Paris, explícito na música emocionada que eu vira no palco, e na moça ainda mais bonita que ela se tornara. Perguntou-me com doçura se eu continuava indo de ônibus para o campus todas as manhãs. Diante da minha positiva, disse que agora tinha uma gloriosa carteira de motorista e podia me levar todos os dias, se eu quisesse.
Morava a três quarteirões de mim, numa casa grande, com os pais e um irmão mais velho – que fazia o orgulho familiar por ser uma cópia perfeita do pai. Cristina lamentara-se disso certo dia no carro que ganhara dos pais: disse que, às vezes, a música parecia apenas uma brincadeira ou um sonho e que, apesar de todo o talento e tanto estudo, acabaria sendo o que o pai e o irmão eram – donos e administradores de um negócio milionário que tinha o nome da família, uma empresa de mineração, uma ocupação totalmente desprovida de personalidade –, apesar de ser mulher e possuir o estigma de fazer as coisas do seu jeito. A opção por estudar música na universidade havia sido continuamente rejeitada pelos pais por motivos que nem preciso apontar. Cristina costumava dizer que o piano que ela aprendera desde criança era, para eles, algo a se mostrar às visitas, um capricho, como dar corda em uma bonequinha a fim de vê-la fazendo coisas graciosas. Aquele piano, porém, acabou por torna-se para essa boneca um contentamento infinito, sua maneira de passar o marasmo de uma vida confortável, e foi nele que mostrou um talento que as professoras da escolinha de música disseram ser sobrenatural a uma menina de seis anos.

O rosto de Cristina me lembrava um álbum de fotos antigo. Não era bem uma moça antiquada, tinha convicções mais bem construídas que as de várias mocinhas de vinte e um anos (ou até mesmo as da sua mãe tirânica...) que sonhavam com homens ricos, casas grandes, prestígio social e filhos lindos; Cristina não era assim, sabia que podia mais, mas, em contraste com a obstinação latente em cada palavra que dizia, tinha algo de camafeu na aparência, como se atrás daquela figurinha inocente, onírica e de olhos azuis, houvesse alguém que parecia ter vivido mais anos do que aparentava. Recebera, como eu, uma educação exemplar de seus pais endinheirados e cultos, uma vida confortável ao extremo (devo lembrar, porém, esse conforto nunca foi sinônimo de prazer) e crescera numa espécie de torre ou redoma. Podia viajar à Europa e passar temporadas longuíssimas na fazenda da família, quando um fim de semana parecia ter a extensão de dez anos. Eu a compararia assim a Rapunzel, apesar de gostar de manter os cabelos curtos – que Nuno dizia ser um dos mais lindos símbolos da emancipação feminina.

Tínhamos as melhores conversas durante as viagens de carro até o campus. Ouvíamos os CDs que lhe ocupavam o porta-luvas do carro, falávamos de livros, indicávamos filmes, mas, acima de tudo, nosso assunto preferido tinha a ver com antigos e novos relacionamentos. Cristina estava solteira depois de um namoro errado com um saxofonista francês que ela importara consigo do intercâmbio, e, depois de três meses de término, eles ainda conversavam e almoçavam juntos uma vez por semana, tentando fazer do pó algo saudável. Mas a ela não lhe faltavam homens: quando passamos a sair juntas nos fins de semana, eu percebia como ela atraía atenções e cantadas, que eram sempre direcionadas a nós duas, mas eu sabia, qualquer elogio era antes para Cristina, para depois tornar-se meu.

O melhor aconteceu algumas semanas depois que retomamos nossa convivência: estávamos em um bar, e ela teve de ir embora por um motivo qualquer, e logo chegou Breno, outro rapaz que estudava com Cristina e meu primo Nuno. Breno, ao perceber que minha amiga já havia partido, não conseguiu esconder seu descontentamento. Cobriu a boca com a
mão e disse ao ouvido do meu primo uma frase que não pude ouvir. Nuno concordou em silêncio, com um aceno com a cabeça e um sorriso que tentava consolar. Sentada do outro lado da mesa, insisti continuamente que ele contasse o que havia acabado de dizer ao meu primo, e demorei uma cerveja inteira até que ele parasse de hesitar, ficasse sem graça e dissesse simplesmente “eu vou desistir”, baixando os ombros e sorrindo, para depois encher novamente o copo de cerveja. Percebi que ele, como uma dezena de rapazes que eu havia conhecido nos últimos meses, havia se encantado pela minha amiga Cristina.

Durante o resto do fim de semana, guardei comigo a confissão cansada de Breno para contar à Cristina assim que eu entrasse em seu carro às sete da manhã, na segunda-feira. Pensei que a notícia lhe agradaria, que ela me perguntaria mais a respeito do que Breno havia dito, e os dois acabariam juntos ao cabo de algumas semanas, mas Cristina simplesmente sorriu, com uma espécie de cansaço nos olhos: “Mas é óbvio que eu sei que o Breno gosta de mim... Eu não sou boba, eu reparei... Eu gosto é do Sérgio, Lena, eu gosto dele enquanto os outros de quem não gosto ficam se apaixonando por mim”. Essa fala ultrapassou qualquer ideia de extrema ingenuidade que eu tinha de Cristina, e em três segundos ela se tornou para mim uma mulher madura e triste. Senti um desgosto profundo – desta vez eu havia pensado que ela cederia a um dos tantos pretendentes que lhe seguiam as pernas na escola de música, mesmo que ela tivesse recusado todos enquanto repetia para mim que, depois do Henri, o namorado francês, ela “não queria um relacionamento sério” e “gostaria de experimentar mais”; ou seja, queria aproveitar ao máximo a solteirice daqueles dias. Mas Cristina não conseguiu esconder, naquele momento, que a obsessão pelo Sérgio estava se afundando.

Sérgio Hoiffmeister era um jovem professor que já havia dado aula a todos meus amigos estudantes da escola de música, e Cristina mantinha com ele uma relação bem parecida com a que sustentava com Henri. Contava-me com gosto a respeito de seus encontros cotidianos: os almoços, concertos, as conversas diante do piano, quando mostrava suas composições e ele lhe dava opiniões afetuosas e sinceras. Acabou se tornando uma de suas alunas preferidas. Acredito que era essa a intenção de Cristina; precisava ser algo preferido de Sérgio, porque Cristina jamais se contentaria com pouco. O que eu mais temia, entretanto, era o modo como ela agia diante do ex-professor. Às vezes eu a via depois desses encontros com Sérgio, e a cada dia ela se apresentava num estado diferente: ora alegre demais e desesperada de tão feliz; ora ansiosa, melancólica, quieta, pensativa, tão ensimesmada que era capaz de sair trombando o corpo nas coisas da rua e machucar-se severamente.

Fora destes momentos, Cristina tinha isso de sempre parecer alegre: assumia seu ar mais contente quando estava mais triste e agônica. Havia esses dias em que ela estava muito agitada, chegava a ficar histérica: bebia demais, falava bobagem, era arrogante, assumia um tom excessivamente promíscuo ao conversar com os homens que olhavam para ela. Lembro-me de que em um desses dias, diante do espelho do banheiro feminino do bar onde estávamos, Cristina confessou que caía no choro a cada vez que olhava para dentro de si e não entendia nada. Eu a imaginava chegando em casa depois de uma noite dessas, enquanto sua família dormia, Cristina sentava-se na cama e não conseguia enxergar direito, sentia-se toda esvaziada, chegava ao ponto lamentável de ter dó de si, uma pena cheia de ódio, e o pranto vinha poderoso, até tornar-se sono. No dia seguinte, sentia-se um tanto patética, mas deixava os despojos da noite anterior para trás de si, porque agora estava expurgada, fora daquela antiga casca de tristeza e histeria; estava tranquila na sua solidão. Podia agora sentar-se ao piano e tocar o número de horas que lhe aprouvesse. Era o único momento em que não maquiava sua fragilidade.

***

Minha tia Helena (de quem herdei este velho nome sofredor) organizava mensalmente uma espécie de sarau no quintal de sua casa, e eu frequentava a festa fazia alguns anos, a convite de meu primo Nuno. Eu costumava ajudar na cozinha, dispunha-me a servir cerveja e era sempre recebida com muito carinho pelos mais velhos dali, que me emprestavam pilhas de livros, que eu devorava e procurava discutir com alguma propriedade. Mais ouvia do que falava, mais sorria do que me dispunha a recitar algum poema. Quando João disse que Sérgio Hoiffmeister era sobrinho de um dos amigos de sua mãe e que ele havia confirmado a presença no próximo sarau, liguei para Cristina com a maior pressa do mundo, mas ela titubeou um pouco na hora do convite. Ela disse que Sérgio havia descido daquele pedestal onde ela o colocara antes, e que ela não se importava – tinha a voz melancólica, dessas que vem de um dia ruim. Senti raiva e continuei insistindo, perguntando se ela ainda gostava dele, e dizendo que a festa, independente de Hoiffmeister, era sempre uma delícia. Depois, na manhã do sábado em que estava marcado o sarau, Cristina me ligou e disse que passava na minha casa às sete da noite. Ligou mais duas vezes durante o dia que correu, questionando-me a respeito do vestuário apropriado. Lembro-me de que era um desses dias de calor estonteante, cuja noite sempre vinha mais amena. Mas vai fazer frio? Vou de vestido? E com quais sapatos? Aliás, com que roupa você vai? Impaciente, eu disse que, com os olhos bonitos que ela tinha, não precisava ponderar tanto a respeito de roupas.

Apareceu no horário exato, e percorremos metade da cidade até o quintal de tia Helena. O céu anoitecera limpo e, como não havia lua, via-se um bocado de estelas entre as folhas das copas das árvores, sob as quais se distribuíram todas as cadeiras e todos os sofás da casa. No centro, sob uma das três grandes árvores do quintal, havia um microfone, um livro de poemas sobre a caixa de som e o violão de Nuno deixado no apoio. A pitangueira estava cheia, e numa tina de alumínio aguardava-nos um monte de jabuticabas, provavelmente colhidas do pé pelos meus primos menores, a quem tia Helena gostava de passar alguns rituais que se tinham perdido com o tamanho da cidade onde eles tiveram que nascer. Cristina fez comentários sobre como ela achava legal o fato de eu ter uma família cheia de artistas e lamentou-se em não fazer parte disso. Sorri para Cris e disse que agora ela podia fazer, se quisesse. Combinamos que ela apertaria meu ombro direito para me mostrar quem era o Sérgio, quando ele chegasse, mas não foi necessário: quando Hoiffmeister a viu de longe e se aproximou de nós duas, eu já sabia que era ele. Veio trazendo consigo uma mão cheia de sementes de jabuticaba, enquanto ainda chupava uma, com uma expressão alegre nos olhos. Era bem parecido às longuíssimas e pedantes descrições de Cristina: cabelos cheios e castanhos, cacheados demais, olhos mouriscos, escuros, nariz comprido, a pele morena, que ficou bem escura em contraste com a pele claríssima de Cristina. Os dois se abraçaram, e ela me apresentou a ele. A barba de Sérgio me roçou no rosto quando ele me cumprimentou – cheirava a um perfume elegante, masculino, apesar de possuir uma delicadeza estranha no rosto, que só é própria de homens corajosos e inspirados. Fiquei um pouco tímida sem entender por que, e, logo que tive uma oportunidade de sair de perto dele, puxei Cristina pelo braço para saudar os meus parentes e amigos de tia Helena que ocupavam a casa.

Acabamos na cozinha, onde tia Helena orientava minha prima Letícia a respeito de alguma coisa que haviam acabado de pôr no forno. Abrimos a garrafa de vinho que Cristina e eu trouxéramos e chegamos a conversar por um tempo, até que outras duas jovens amigas de tia Helena chegaram. Através da janela da cozinha que dava para o quintal, Nuno pediu uma taça de vinho e brindou conosco. Letícia olhou pela janela, disse algo ao irmão, virou-se para nós e as outras moças e pediu que não olhássemos agora, mas o Serginho estava ali. Percebi o desconforto no rosto de Cristina quando elas começaram a fazer comentários a respeito dele. Uma moça perguntou se ele era casado, disseram que havia desmanchado com a mulher, e depois perguntaram se ele não era gay ou um desses cafajestes que escolhem uma por semana. Uma delas sabia que ele estava morando sozinho, porque era vizinho de um amigo do namorado dela, e ficaram um tempo especulando a respeito de Sérgio, antes de começarem a tecer comentários sinceros demais sobre ele, enquanto espreitavam pela janela. Já viu ele cantando? Meu Deus, que homem bonito, não gosto da barba, ele devia fazer a barba, mas mesmo assim, ele podia vir sempre, não é? Será que ele vai cantar? Muita risada – Cristina foi abaixando o rosto para o chão. Cada um daqueles comentários lhe atingiam como uma espécie de insulto.

Apressei-me em tirá-la dali, e do lado de fora da cozinha ainda vimos as moças espiando o quintal. Cristina sentou-se num sofá, olhou para as folhas das árvores e para o vinho, sem colocá-lo na boca. Seu empreendimento agora parecia uma besteira, uma completa impossibilidade, tantas mulheres, os comentários... Quando me sentei ao lado dela, ela disse que precisava ir embora, que não aguentava mais um minuto naquele lugar. Pedi a Nuno que fosse à frente e tocasse uma música, como se isso impedisse Cristina de partir. Não soube qual era, nem prestei muita atenção; tentava convencer Cristina a ficar, mas ela já virara o vinho da sua taça dentro do meu copo e ia se levantando para ir embora. O que a prendeu foi a cena de Nuno arrastando Sérgio para o microfone e lhe metendo o violão nas mãos. Já haviam começado a aplaudi-lo – confesso que aquela bajulação dos saraus me dava bastante nojo, mas era a única coisa que impediria a partida de Cristina. Já haviam me contado que Sérgio era famoso pelas canções que compunha, mas aquela era a primeira que eu ouvia. Nuno sentou-se ao meu lado e disse para eu escutar bem. Não acreditei na voz que Sérgio tinha quando começou a cantar: era tão leve e tão fácil que passei a compreender um pouco do que aquelas meninas diziam. Havia algo de sobrenatural naquelas mãos deslizando sobre o corpo do violão, nos olhos que caíam em cima da plateia enquanto ele nos dava uma música que falava de mar. Nuno acendeu um cigarro, e me levantei, irritada pela fumaça, indo sentar-me numa cadeira vazia perto de Cristina, de modo que eu via Sérgio quase pelas costas. Movia-se de maneira meio idiota enquanto cantava, batendo o pé no chão ao ritmo da música, virando o corpo.

No momento em que me sentei e olhei para Cristina, senti o coração doer – vi um amor paralisado enquanto ela olhava para a música. Sem aquilo de “não querer um relacionamento sério” e “experimentar mais”, era tudo ausente; a forma como ela olhava para ele não tinha atuação alguma, ou qualquer máscara estúpida, mas um horror que era somente dos olhos dela. Vi o sofrimento de Cristina, enquanto eu já estava toda embebida naquilo, quando Sérgio terminou a música e pediram outra. Começou de novo. Eu olhava agora para ele: a camisa branca com listras azuis quase invisíveis e mangas dobradas sobre o antebraço ficava por fora da calça que parecia ser jeans de longe, mas era de um pano azul que lhe caía muito bem, um pano tradicional, antigo e eterno, cuja textura macia (ainda não sabia) eu sentiria posteriormente na palma da minha mão. Já pude imaginar os poucos pelos que ele tinha, deslizando em linha por aquela tradicional barriguinha proeminente dos homens felizes que ele sustentava, apesar de ser magro, e emendando com os pelos escuros no peito moreno, ainda ralos, como se ele tivesse demorado até os trinta para tê-los. Enquanto eu o destrinchava, Sérgio se virou de repente e olhou para mim até o fundo e continuou com os olhos fixos nos meus por cinco ou seis palavras, o que era muito tempo em uma canção tão leve. Depois, soltando-se devagar de mim, olhou de novo para o público e terminou sua música em mais alguns poucos versos. Senti uma dor horrível e demorei um bom tempo para voltar a respirar.

Tenho a impressão de que Nuno foi o único a perceber o que havia acontecido – ele olhou para mim, sorriu, e nunca mais falamos disso. Cris, enfim, resolveu ficar, e Nuno fez com que ela cantasse Valsinha com ele, depois de anunciar a todos (na voz mais alta que conseguira atingir sem chegar ao limiar do grito) como Cristina cantava bem. A voz era fácil, delicada, afinadíssima. Uns senhores não tiravam os olhos dela. Ajudei na cozinha, servi o escondidinho de carne-seca que tia Helena havia feito, mas, como minhas mãos ainda estavam tremendo depois do impacto de ver Sérgio me enxergando, derrubei no chão dois copos e me cortei quando estava juntando os cacos. Fui pedir a Cristina um “band-aid” (ela sempre tinha tudo dentro de uma bolsinha de maquiagem) e encontrei-a sentada no sofá, conversando com Sérgio. Exibi o machucado e ela mesma me fez o curativo. “Que foi isso, mocinha?”, Sérgio perguntaria, e eu falaria dos copos. Cristina começou a falar de mim – estudava comunicação, me formaria em jornalismo no próximo semestre. Falei de alguns trabalhos na cobertura de dois shows com um pessoal da faculdade, e tudo aquilo me pareceu tão medíocre que resolvi me calar. Ouvi a conversa dos dois por algum tempo e depois me retirei para dentro da casa, entrei no quarto de Nuno, comecei a mexer nas coisas dele. Depois, recostei-me na cama e adormeci.

***

Sérgio Hoiffmeister tinha um apartamento de quem morava de qualquer jeito, e com saudade. De qualquer jeito, porque ainda havia uma desordem agradável em tudo: quadros no chão, sofás furados, um copo de cada jeito, xícaras sem asa; com saudade porque o apartamento era velho, habitado por tantos outros e agora, apesar de ser dele, conservava restos anônimos de um tempo passado – ladrilhos, parede pintada da cor encardida que um desconhecido escolheu um dia, piso de tacos de madeira. Uma casa feita de erros. Cristina disse que, da primeira vez em que dormira ali, ele lhe dera o café do dia seguinte em um copo de vidro, hábito que a mãe não suportava. Quando foi morar com Sérgio, a mãe tampouco suportou, de modo que ela teve de se virar pela primeira vez na vida, e para viver sozinha. Uma bolsa de mestrado e algumas aulas de piano para mocinhas ricas ajudavam-na a pagar as contas, o condomínio, os livros que cresciam numa estante carregada e a cerveja que continuávamos tomando.

Ao entrar ali pela primeira vez, ouvi o barulho de água correndo, e Cris reclamou que eu havia chegado cedo demais e o namorido ainda estava no banho. A casa toda tinha o cheiro dele, um cheiro que eu sentira por dois segundos a cada vez da meia dúzia de encontros que eu tivera com Hoiffmeister na minha vida: uns shows, saídas com Cristina em espaços culturais construídos em ruínas de outras coisas, cercados de amigos e, em especial, uma pequena entrevista que ele me concedera no camarim de um teatro onde ele se apresentara. O perfume dele, desta vez, já ficaria mais forte depois do banho, e, como o apartamento já era marcado pela pele dele, me senti perturbada por aquilo novamente– o cheiro onipresente de uma pessoa que nos incomoda é como música insuportavelmente alta.

Seis meses antes dessa visita, eu esperava na portaria do meu prédio quando vi o carro de Cristina chegando atrasado pela primeira vez em tantas caronas. Quando entrei, a expressão no rosto dela explicitava algo que eu não consegui decifrar. Demorou cada segundo da viagem até o campus para me contar que havia passado a noite na casa de Sérgio. No fim da tarde anterior, eles tinham ficado conversando na sala de piano e depois ele a chamou para tomar um café em um lugar que não fosse a escola de música. Ela pegou o carro e dirigiu até o centro. Sentaram-se numa padaria velha (aquelas que costumamos chamar de “tradicional”, cheias de quitutes que nossos avôs foram os primeiros a provar) e continuaram a conversa por horas, uma conversa fluente, volumosa, que tinham vontade de continuar mesmo quando interrompida pelo silêncio da conta (três croissants, um sanduíche, um chá, um café, uma água com gás, Cristina guardara a nota). Cris se ofereceu para levá-lo em casa, ele resistiu, disse que não precisava, provavelmente fingindo; ela segurou a mão de Sérgio e disse algo como “você quer, eu quero, vamos logo com isso que eu estou começando a achar que você não gosta mesmo de mim”. Dirigiu com as mãos tremendo, enquanto conversavam sobre os CDs no porta-luvas. Sérgio chamou-a para entrar, Cristina chegou a guardar o carro na garagem... Sérgio quis passar um café, Cris insistiu que era tarde para tomar café. Ele ofereceu uma cerveja. Sentaram-se na sala. Ela estava com um coque complicado no cabelo, contou-me, ele começou a soltar-lhe os grampos, um a um, antes de levar aquela mão bonita que ele tem ao rosto de Cristina e beijá-la. Naquela viagem de carro, contou-me que se contentaria se fosse apenas um caso passageiro. Mentia, ao listar e me lembrar os benefícios da solteirice. Estava completamente apaixonada.

O interfone tocou enquanto Cristina me falava da mudança recente, sentada na sala onde eles haviam se beijado pela primeira vez. Chegara uma leva de amigos, também veio meu primo Nuno, com o violão. Enquanto, na cozinha, eles colocavam as cervejas para gelar, continuei na sala, sozinha, e ouvi o barulho de água cessando. A porta do quarto do casal estava entreaberta, e uma luz se acendeu ali – através da fresta breve, vi Sérgio passando com os cabelos molhados e a toalha amarrada na cintura; parecia-me ali, quase nu, exatamente como eu o imaginara antes. Virei o rosto, fui até a cozinha, cumprimentei várias pessoas, Nuno me contou alguma coisa que, provavelmente, era engraçada, mas eu não prestei atenção nem fiz qualquer esforço para rir do que todos riam. Sérgio apareceu em poucos segundos e lá estava o cheiro, eu pensei que ia sufocar quando ele me cumprimentou. Assim que ele se virou para saudar os outros, levei a mão até onde a barba dele me roçara o rosto e esfreguei a bochecha, como se pudesse limpá-lo de mim. Percebi como os cabelos dele começavam a ter um tom esbranquiçado, e pela primeira vez pensei na diferença de idade entre Cristina e Sérgio. Depois, eu perguntaria à minha amiga se a mãe não havia chiado por ela ter se comprometido tão rapidamente com um homem mais velho, Cristina sorriu, disse que o pai também era alguns anos mais velho que a mãe, e concluiu que talvez fôssemos, de outras formas, apenas a repetição dos nossos pais – afinal.

Depois de algumas cervejas, quis ir ao banheiro; Cristina me viu girando em vão a maçaneta do banheiro ocupado da sala e disse para eu usar o do quarto dela. Ela me conduziu até a porta entreaberta na qual eu vira Sérgio e encontrei ali a cama de casal com uma colcha colorida. A porta do banheiro estava na parede perpendicular a da entrada, Cristina acendeu a luz e reclamou da bagunça que o Serginho fazia para tomar banho. Fica à vontade, ela disse, e fechei a porta. Num cabide dependurado na parede, reencontrei a antiga calça que ele usara no dia do sarau. Toquei o tecido, e lá estava, exatamente como eu imaginara. Fui sentindo uma coisa ruim por dentro, a vontade de chorar veio e eu não consegui segurar quando uma lágrima se precipitou do meu olho e caiu pelo rosto que vi no espelho redondo à minha frente. Quando saí, encontrei Cristina sentada na cama, folheava um livro com uma expressão muito tranquila nos olhos e no corpo. “Lendo o quê?”, perguntei, sentando-me ao lado dela. “Não, só tô folheando. É um livro de contos. Sérgio e eu lemos um para o outro, antes de dormir, quase toda noite...”. “Que bonito”, eu disse, com medo do choro transbordar de novo. Encostei a mão no braço de Cristina, e ela sorriu para mim e me abraçou. Percebi, pela primeira vez, o que me condenaria ao fim daquela amizade – Cristina era realmente uma dessas pessoas destinadas a ter tudo o que desejavam. Conferi que ainda possuía aquelas mãos estranhas de pianista, os dedos compridos, unhas curtíssimas, sem cor, meio roídas. Lembrei-me, ela sempre tentava conter esse hábito, mas roer unhas era um apêndice de infelicidade; roer unhas não importava, tentar parar de roer unhas é o que se faz enquanto se vive os dias. Cristina estava, a meus olhos, calma como nunca fora e pronta para passar seu tempo do modo que desejava. Comecei a chorar.

***

Já não via Cristina havia quase um ano quando reencontrei Breno num ponto de ônibus. A conversa já estava rendendo quando começou a chover muito. Abri minha sombrinha e, levando-o por baixo, entramos numa lanchonete qualquer. Sentados numa mesinha enquanto o mundo tempestuava lá fora para depois deixar-se caindo numa chuvinha ridícula que duraria a madrugada toda, conversamos até escurecer. Num ponto, falei de Cristina e ele sacudiu a cabeça, talvez querendo mudar de assunto. Lamentou-se por um dia ter gostado dela. Fizemos um grande esforço para criticá-la: Tão ingênua, tão irritante, usara Sérgio para entrar no meio musical, não era? Bem óbvio – Breno disse que ligara a tevê um dia e estavam transmitindo um concerto do Sérgio, e no fim ele pegara a pianista pela mão (lá estava Cristina) e fora agradecer ao público com ela. Ela não era nada perto dele, era? Era algo, mas o nome dele era maior, sempre seria maior. Engraçado como antes Cristina era tão erudita, e agora cedia às canções de Sérgio, hem? Apesar de ele ter ouvido falar de uns concertos que ela andava fazendo e de umas viagens, não era mais a promessa de antes... Era? Enfim, resolvi apelar e dizer-lhe que me afastara de Cristina desde quando ela começara a namorar o Hoiffmeister. Cris passara a me subjugar o tempo todo e se comportava como uma princesinha, me tratava como se eu estivesse errada o tempo todo. Disse-lhe como eu havia aguentado a situação por um tempo, mas depois acabei me cansando das grosserias. Breno teve uma espécie de pena de mim, e eu não disse que era tudo mentira: Cristina continuava sendo um doce, às vezes um doce excessivo, e na verdade foi isso que mais me desconsolou – é possível odiar alguém por causa de um aspecto positivo? Não era uma podridão que havia dentro de mim que me fez odiá-la, efetivamente? Breno, franzindo o rosto, pediu permissão para fazer uma pergunta pessoal demais. “Sempre achei que você também fosse a fim da Cris”, ele disse, fez uma pausa, me olhou bem – “era?”. Neguei. Breno riu, pediu desculpas, eu ri também, disse que não precisava se desculpar. “Deve ser fantasia da minha cabeça, sei lá”, ele concluiu.

Depois daquela conversa com Breno, pensei em Cristina de maneira tão obsessiva que aquilo passou a turvar a minha visão. Eu havia sentido uma espécie estranha de alegria certa vez em que ela disse querer nutrir algum interesse por mulheres, logo depois de um breve desencantamento por homens ao término com Henri. Cris chegou a me perguntar se eu tinha algum olho por meninas, e eu disse que não. Meninas podiam fazer parte do “experimentar mais”, percebi que eu podia ter experimentado e poderia estar em uma condição mais alegre agora. Mas isso não foi uma oportunidade perdida, nem sequer foi uma oportunidade, porque eu não estava ao nível do que Cristina era e do que Cristina queria. Cheguei a sonhar duas vezes com a maneira que Sérgio me olhou naquele sarau e aquilo me deixou confusa por dias. Percebi, aos poucos, que o mundo das caronas havia sido impossível de manter. Fui me dando conta de que a vida parecia deixar que algumas pessoas alcançassem livremente o que queriam, enquanto outras se contentavam com bastante mediocridade e ainda achavam que podiam fazer algo mais nobre. Tudo o que aprendi sobre música de verdade foi no carro de Cristina, e qualquer tentativa de arte para mim sempre fora uma grande decepção.

Talvez este pequeno relato confuso sirva para alguma coisa a alguém, porque, para mim, já não serve para nada; é o único e o último que me dou o trabalho de escrever. De qualquer forma, aceitei o que me foi dado e entendi que me afastara de Cristina para não sofrer com o que eu não podia ter – e mesmo assim, não entendia muito bem por que sofria e o que queria. Trabalho numa revista de arte e cultura, e, quando se falou certa vez de Sérgio Hoiffmeister, pedi férias morrendo de medo de pegar uma segunda entrevista. O rosto dele apareceu em uma dessas páginas, olhos mouriscos, nariz grande e a barba áspera com fios brancos da idade que se ia passando. Nunca aprendi a dirigir. Breno e eu saímos poucas vezes antes de assumir o namoro e nos apaixonamos pela rotina de espectadores em um meio cultural. Ele partira para o mestrado, e nos casamos depois que ele completou o doutorado: acabou virando professor. Agora, acredito em destino. Por muito tempo, quis que ele lesse algo para mim quando nos deitávamos para dormir, mas sempre estávamos tão cansados que resolvíamos cair no sono antes. Então, resolvi me contentar com o que me dizia respeito.

terça-feira, 14 de junho de 2011

O Dente do Louco (2)


Faço isso para que ele não arranque os próprios dentes. Às vezes eu arranco sim um dente dele, e ele sofre. Faço isso para que ele não arranque os meus. Ele desliza na minha boca úmida e belisca, eu cuspo ele pra fora gritando as palavras que ele gosta de ouvir. Às vezes, também, eu mato o louco: recuso a tentação de ir agora em direção a ele e obedecê-lo. Preciso esperar isso. “Vê, a linha da terra?”, ele diz, ressurgindo sem dor. Ele começa a crescer de novo como uma erva nas próprias vísceras. “Você sente na ponta da língua uma coisa escura e asquerosa? É tinta. Livre-se disso. Cadê sua palavra, hem? Fale comigo!”, diz o louco. Ele coloca o lápis de volta na minha mão e diz que há mais santidade no meu ato do que qualquer reza. Preciso acabar com isso logo, penso. “Então acabe”, diz o louco. Permaneço. “Diga logo”, ele insiste. Sim, vou dizer tudo. Continuo calada. Ele olha para mim. “Lá vem o tempo”, diz o louco, “você quer acabar igual a mim?”. Eu rezo e falo com a terra e registro a minha palavra. Assim que eu escrevo o nome do louco, o louco adormece.

terça-feira, 7 de junho de 2011

O Dente do Louco (1)



Ouço o que o louco diz. Ele ameaça tomar o lápis da minha mão e diz: “cinqüenta e sete!”. Ele quase me faz tropeçar na calçada quando me faz olhar para uma nuvem no alto. A caminho do ponto de ônibus me encontro com Daniel em frente ao louco. Eu estou voltando para casa, Daniel está indo embora. Cumprimento a timidez dele com um abraço quase beijo no rosto (“agora estamos ouvindo música”, diz o louco), a saudação híbrida daqueles que têm pouca intimidade. “Daniel!”, diz o louco. Mando ele se calar. Daniel está de óculos escuros e carrega livros; pergunta se eu já revelei as fotos daquele dia. Digo que ainda não, mas que vou fazer isso hoje se eu tiver tempo. Eu vejo o louco que Daniel tenta esconder com o corpo. Daniel ouve muito o louco dele e finge não ouvir e se cala quando eu pergunto se o louco existe. Às vezes, quando se sente próximo de mim e confia em mim, Daniel sussurra as coisas que o louco dele diz. O louco dele diz: “Esquerda! Nanquim! Quadrado! Pedaço de pano!”. Eu vejo o louco que fica atrás da cabeça dele. O louco dele é bom. Ele tem vergonha do louco, ele não fala do louco. Quero que meu louco seja bom também. Daniel leva um cheiro de perfume forte que faz o louco ver o banho que ele tomou em casa. “A que horas Daniel acordou?”, o louco pergunta e exige que eu pergunte isso a Daniel. Mas deixo Daniel despedir-se de mim com sotaque e retomar o seu caminho. Penso que a mulher de Daniel também tem um louco, mas o louco dela é mulher. Penso que vou para a terra pura de Daniel um dia, e o meu louco irá comigo para berrar cada coisa que vê.