sexta-feira, 25 de março de 2011

Cascalho (II)



Você veio da última vez procurando por uma mulher – não alguma mulher, mas uma mulher específica. Há um anos na feira você reaparecia, sempre estrangeiro, enquanto eu estava fazendo compras para a casa de Ivone. Lembro-me do seu rosto: ele é branco, quase rosado, e não sabe sorrir para as fotos. Tem a bravura de um estrangeiro. Me pergunta, em sua língua, o que eu estou fazendo ali. Digo, sou daqui, pertenço a esta cidade, nasci aqui e volto quando há tempo para ficar livre com minha família. Falo a sua língua de estrangeiro enquanto tenho castanhas e frutas nas mãos – torno a sua palavra minha quando a digo com meu sotaque cheio de rompimentos. Parece estar emocionado por me encontrar ali, no perfume dos temperos ou de cavalos, te convido a minha casa. Você tem uma mochila nas costas. Pergunto se tem onde pernoitar.

domingo, 20 de março de 2011

Cascalho (I)

(Retorno ao blog agora que longas escritas parecem ter se diluído: nas próximas semanas, posto aqui algumas partes de uma pequena história que estou escrevendo aos poucos, na medida que o tempo permite as palavras)



Que estranho foi deixar cair a fotografia de uma página marcada de um livro lido enquanto organizava as minhas coisas de cima da mesa de Ivone: a fotografia caiu com a face para o chão de madeira, como se algum destino complacente pedisse para eu não olhar o que havia ali. Não olhe aí, ele diria, jogue fora, deixe no chão, mas jamais olhe.

Pois, até o momento em que a mão não resiste e puxa para si, para perto do rosto um pedaço do rosto antigo, apenas o rosto, o seu, não diminuiu o susto de um rosto verdadeiro apesar da imagem não ter carne – aqui, aqui estão, os olhos, o sorriso que não sabe sorrir direito; que estranho, deixar a fotografia cair e sonhar com você na noite seguinte: sonhei que estava na cozinha com Ivone e que estava fazendo um doce, algo de damasco ou abóbora. E você apareceu então na minha casa, de carne sonhada, e dessa vez você dizia coisas sobre o jantar, sobre a geladeira, sobre os meus sapatos novos, sobre o meu cabelo preso, sobre livros inteiros, e lá, o pote de mel sobre a bancada da cozinha (não havia nada de açúcar branco e puro na casa de Ivone) você provavelmente queria meter o seu dedo ali e provar um pouco do gosto antes que o doce de verdade ficasse pronto.

(De fato, pior ainda que sonhar contigo, é sonhar que se tem sapatos novos e de repente despertar e ver que não há sapatos novos mas os mesmos sapatos velhos de sempre. Você não está mais aqui, nesta cidade, repito para a janela, de madrugada, e sigo procurando por você nas luzes apagadas)