quarta-feira, 31 de março de 2010

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Talvez a maneira estranha em que ele apertou meu ombro duas vezes quando passou na fileira por trás de mim no auditório, sem me olhar, sem sorrir. Não foi lascivo, mas confirmou alguma coisa que eu suspeitava sem ousar. Gosto mudo. Talvez desse linha a um caso de amor verbal, ou nos levasse à carne sem dizer uma palavra. A mão dele tinha cheiro de cigarro e encostou na minha pele por poucos centímetros, o pedaço de epiderme que não era coberto pela alça grossa do vestido.

sábado, 27 de março de 2010

Marina e o Mangue



I

Ela estava falando que não era assim difícil acordar cedo, que era só abrir a janela que o filho despertava, o filho acordava sempre alegre. Talvez por que como ela o filho era uma criatura da manhã e do dia. Citou, inclusive, que lera numa revista que era bom dar o jantar cedo para as crianças: no dia seguinte a fome seria um motivo bom para que elas acordassem sozinhas. Vicente sorriu, dizendo que com ele nada daquilo adiantava. “Quando você tiver filhos, você vai ver como as coisas ficam”, Marina comentou, “a gente vive em função deles”. Ela mexeu de novo no suco de melancia, Vicente pensou em sua esposa falando que suco de melancia engordava, algo índice glicêmico ou coisa parecida, devia ter lido em uma revista também. “Você mora aqui perto?”, Marina perguntou sem levantar o rosto. Não olhava para ele, tinha nojo dele. “Lourdes?”, ele perguntou. “É”. “Moro”. Marina levantou a cabeça para o alto, sem passar os olhos por ele, e depois abaixou o rosto de novo. “A grana que ele me dá é boa”, disse. “Eu poderia morar aqui, mas não gosto. Eu não trabalho por perto e esse bairro é tão... Limpo... Estranho. Meu filho não ia gostar, ele tem os amiguinhos dele lá no prédio, os vizinhos”. “E onde você mora?”, Vicente perguntou. “Num apartamento pequeno. São Pedro, quatro quarteirões da Contorno. É bom... Os meninos... Eles jogam futebol na garagem. A síndica fica furiosa. Eu estive até pensando em estudar, sei lá, fazer alguma coisa com meu tempo. Eu só vou à academia, cuido da casa, do meu Dani...”

O almoço estava demorando. Já haviam reclamado duas vezes com a garçonete transtornada, a moça com uma cara triste, as pernas finas, carregando pratos copos e cinzeiros pelas mesas na calçada e dentro do restaurante cheio. Vicente se adiantou, tocando o rosto de Marina. As cicatrizes do rosto eram mais brandas, imperceptíveis, como as velhas marcas no braço, um ocasional limão ao sol. Ainda eram feias. “Dá pra melhorar isso sem fazer cirurgia, você sabe?”, ele disse. Num gesto agressivo Marina tirou a mão dele dali e se preparou para se levantar e quem sabe ir embora. Vicente pensou que ela ia morder seus dedos. O faria se a garçonete inábil não houvesse chegado com os pratos cheios – Marina derrubaria toda a comida. Apenas olhou para Vicente enquanto ele abaixava os olhos e tentava sorrir. Marina pegou os talheres e, rancorosa e muda, começou a comer.

II

Muitas vezes havia a sensação de que o quarto casal seria também uma sala de visitas, foi a última coisa que pensou antes de dormir e logo depois de enfiar o corpo dormente entre lençóis caros que ganhara já não sabia de quem. Coisa da mulher, ela abriu, ela agradeceu os presentes, ela escreveu cartões brancos em envelopes brancos de alta gramatura e enviou pelo correio. Ainda não sabiam muito um do outro, aquela estranheza de morar nas mesmas paredes pela primeira vez – antes, eram apenas fins de semana entrecortados por cervejas e trabalho – exigências na família, a vontade de ficar junto. A esposa, a pele inacreditavelmente macia da esposa, um objeto de luxo. Ansiava, estranhamente, ver aquela pele ficando velha e flácida, com manchas, para que não fosse mais um modelo de esposa, aquela puta em prontidão todo o tempo. Gostava de alguns maus-cheiros dela, como sob as axilas depois de um dia quente de trabalho, ou o hálito de uma leve ressaca ao acordar numa manhã de sábado depois da antecedente sexta-feira cheia de risadas. A mulher mais bonita da cidade para o homem mais ambicioso.

Ele ficava esperando agora que a mulher reclamasse de alguma coisa, mas ela não fazia nada. Estava tão absolutamente feliz que ele tinha vontade de brigar com ela – destruir a vida dela, de bater nela. Era a maneira em que ela estacionava bem o carro, a maneira em que ela pintava o cabelo, a maneira que ela depilava a virilha, a maneira em que ela falava da lua de mel na praia para as amigas ao telefone depois de escolher as flores e alugar os talheres de prata para o casamento. Ela e as amigas – parecia uma vingança, uma reunião de bruxas, tinham o universo delas e eram tão felizes juntas que, o que era aquilo que sentia? Era inveja ou ciúmes, não sabia bem a diferença, não eram católicos, não seguiam religião alguma que não fosse aquele leve e automática religião do cotidiano. Pensar a lua de mel – ele não gostara tanto. Nunca foi de gostar de praia, disse, por ter nascido em uma praia, mas tolerou o sol e chegou a entrar no mar como se o desafiasse, furando ondas bravas e engolindo forçadamente sua água. Eram inimigos, ele e o mar, ele soube desde quando quase se afogara pela primeira vez, de pequeno. Férias tristes, Vicente só conseguiu aceitar a escolha que fizera de ficar com aquela mulher, justo aquela mulher fina, delicada, silenciosa, depois que colocou de novo os pés na cidade e prometeu de novo que nunca nunca mais veria o mar em sua vida.

Ele gostava de presenteá-la – um anel, um par de sapatos número 36 e inclusive um filhote vira-lata que não crescera quase nada e que se escondia em baixo da cama todas as vezes que tinha foguete e trovão. A beleza do mundo era intolerável de tão correta.

III

O nome o perseguiu por dias inteiros. Marina. A esposa ficara preocupada com ele, dormia mal, estava estranhamente agitado. O fato de que a esposa podia deixá-lo o aterrorizava e quando ele tentava conversar isso com ela, ela ria, achava tolice, prometia, Vicente, eu nunca vou te deixar. Você nunca me deu um motivo pra me deixar, pára com isso. E ele se sentia incomodado todas as vezes em que sonhava com a cidade, os pais, ou qualquer coisa que não via há mais de quinze anos. Não sabia de nada deles, talvez muitos tivessem morrido. Você tem vergonha de onde nasceu? A esposa perguntara tantas vezes. Qual foi o problema? Enjoou das casas, da escola, das bananeiras, da bicicleta, das noites muito frias, da umidade que não passava, dos dias muito quentes, da preguiça, das fachadas indestrutíveis de casas muito antigas, das pedras da rua que continuavam sendo pedra, dos muros caiados que continuavam sendo muro; e tinha certeza de que aquelas pessoas continuavam as mesmas, algumas mortas – não, todas mortas – que aquelas pedras jamais seriam asfalto. Seriam as mesmas vias e as mesmas casas, o mesmo mar sem trégua, das missas, os mesmos doces, os almoços, os peixes, dos barcos, do descaso, da obviedade, das putas que se recolhiam durante o dia aparecendo fora de suas casas em horários mortos evitando infortúnios, uma fora apedrejada, bíblica, do cabelo cacheado de Marina sempre úmido e salgado como se ela tivesse acabado de tomar banho de mar todo o tempo, de suas calcinhas de algodão amarelado, gasto, das tormentas, nada tinha uma aparência devidamente limpa, devidamente arrumada, da estampa florida dos seus vestidos, dos decotes exageradamente chatos, das promiscuidades que a irmã mais nova estava aprendendo, dos livros que não mudavam de estante, de caranguejo no mangue, refeição apressada e tardia de algum dia, dos azulejos. E Marina, Marina sentada no degrau em frente à casa, Marina namorada que jurara que não deixaria por nada no mundo.

Os dois estavam juntando dinheiro para ir para alguma faculdade. Vicente, enojado, se inscrevera em várias cidades grandes de vários estados, de preferência, que fosse bem longe da costa e bem dentro da terra, longe do cheiro salgado da onda na areia impertinente, e suas conchas. Direito. Marina seguiu seu passo. Os pais deles não queriam que eles fossem embora. Ele tinha as melhores notas da cidade e Marina já ganhara o posto de moça mais bonita. Na festa junina, era a noiva. Aquilo – a moça mais bonita para o rapaz mais ambicioso. Marina passou em uma faculdade, ele passou em todas. Disse que iria com ela.
Mas Marina não quis ir. Ela chegou a chorar umas lágrimas submissas – não gritou, não protestou, não fez nada – enquanto brigaram numa ponte em cima do rio em cima do mangue. Madeira podre, enquanto ela andava caiu com o rosto no chão e nas raízes disformes das plantas. Sujou a areia de um sangue amarelado, dissolvido em umidade. Chorou muito. Tentou ajudá-la, mas ela disse que era para Vicente ir mesmo, que ela não ia nunca mais ver a cara dele na vida.

Quando Vicente foi embora, aquelas feridas ainda não tinham se tornado cicatrizes. Ele precisava de um caminho seguro, um céu limpo, umas sombras confiáveis, nuvens que não se tornassem nunca chuva. Tinha a sensação de que fizera todo o caminho para longe do mar descalço num deserto de areia, conchas, caranguejos e raízes secas que saltavam de dentro do sal.

IV

Reencontrara Marina por acaso, sem querer contar quantos anos depois. Foi numa dessas chuvas sem trégua há uma semana, estavam próximos ao dia de finados e já havia uma preparação para o natal. Ele caminhava em direção ao estacionamento levando consigo um guarda-chuva quebrado. A chuva provava aos homens que eles ainda faziam parte da natureza, lera isso em alguma revista também. As barras das calças molhadas e ele estava com frio, a roupa, aquele artigo que provava como eram fraquinhos, tecido para esquentar uma pele quase sem pêlos, como aquilo era ridículo.

Viu Marina parada no vão de uma padaria. Parou, eles se haviam olhado daquela maneira na qual era impossível fingir que ignorara uma pessoa. Demorou a se lembrar dela. Continuava morena (perguntou-se se ela ainda tinha as marcas de biquíni de antes), os cabelos cacheados presos, uma roupa de ginástica, um saco de pão. Ela sorriu. Viu as marcas no rosto dela e os olhos grandes, puxados. Se abraçaram e a chuva se transformou em remorso.

Contou que morava ali há seis anos – como nunca tinham se encontrado antes? Que tinha um filho. Se casara, mas se divorciara há poucos meses. Parecia excelente. Saudável. A calça de lycra, o tênis de no mínimo quinhentos paus o par, convidou-a para tomar um café ali, nos copos de vidro enquanto a chuva parava. Era a mesma Marina com os pés na lama do mangue, a mesma que via pôr-do-sol, o mesmo otimismo, a mesma inocência, só que em outro contexto. Mudara. Na verdade, ele não soube. Conversaram pouco, ela precisava buscar o menino na escola. Trocaram telefones e combinaram de almoçar um dia desses. Marina com aquelas cicatrizes no rosto, parecia que ela tinha sido ferida por um bicho muitas vezes maior do que ela.

sexta-feira, 26 de março de 2010

terça-feira, 23 de março de 2010

Medéia

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Nesse tempo, eu já fui Medéia, aquela que não podia trair a própria terra.
Joguei contra - aprovo o melhor, me aplico ao pior.
Devoro os meus filhos.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Perto da Estação Central




Quanto vale cada azulejo? Que calor – é assim que eu confio na previsão do tempo, pelos joelhos dela. E mais tarde, então, que frio. Um casaco, um abraço, a fome. A demolição de uma casa, interrompida no domingo, vemos os restos dela se desfazendo no chão em cores de paredes e ladrilhos. Vai chover. O cheiro de cimento molhado, restos de terra e vida. Domingo, chamego, sushi, a casa ficou uma bagunça... A cama. A nossa.

“Mas será que você não me ouviu?”, seguro o braço dela. “O ouro serve apenas às mulheres casadas, mãe ausente, aos sapatos de salto”. Nós não. “Você precisa se cuidar melhor”, eu disse a ela, descabelada, limpando o vidro opaco da cozinha com um pedaço de jornal, contra ele o céu nublado. Você toma banho e limpa os restos grudentos de sexo que ainda há em você. Ouvir de longe o metrô passando, de tempo em tempo, contando, para nos lembrar há quanto tempo estamos aqui e por quanto tempo... “vamos ficar aqui?”. “Eu preciso me vestir, o último é às onze e há tempos não tem luz nenhum saindo daquela janelinha ali, olha”, “onde?”, “aqui”.

Ainda esperaremos que o relógio quebre, que os insetos corrompam os móveis, que a chuva, essa, dos seus joelhos e impressões, maltrate os tijolos. “André você ainda tá aí? Você ainda tá falando comigo?” Não, esquece o que eu disse. Dorme hoje aqui, comigo, nessa cama desarrumada. Nenhum trem vai nos acordar de novo, do modo abrupto no qual eu te maltrato (os hematomas, hematomas em volta dos mamilos) durante os dias.




(a foto é da Letícia, uma amiga, vítima de uma experiência amadora e longa demais que fiz com uma Olympus Trip 35 e filme preto e branco. Ainda tenho uns rolos a revelar, mas não me animo, por que fotografia é uma coisa muito cega e já me basta a miopia grave que herdei do meu avô)

terça-feira, 16 de março de 2010

dias amenos #10



Memória por extenso é náusea má, rubor, sua curva. É cronômetro, flor levando três dias para murchar, a cadavérica chave do portão que range. Olhar pelo olho do outro, andando de costas para a vida.

quinta-feira, 11 de março de 2010

dias amenos #9



Útero, a palavra ressalta algo que minha mãe nunca teve. Ela gerava os filhos dentro de outros órgãos – um pulmão, o estômago, um rim, o baço, o apêndice. Nasci deste último inútil fragmento de seu corpo e vim pequena, com menos de sete meses. Não agüentei viver no amargor de dentro daquela mulher. E quase não vivi – apêndice improfícuo, inflamou de me ter lá dentro e ele saiu comigo do ventre magro de minha mãe, e nunca mais fez parte dela.

Mamãe usava anéis estreitos para dedos raquíticos. O cabelo sem corte não crescia além dos ombros, era deixado sempre preso e justo. Ela deixava o rádio ligado o dia todo, mas nunca escutou música. Ela nunca olhou de uma janela simplesmente por olhar. Nunca pintou as unhas, nunca plantou flores, nunca quis sair dali.

terça-feira, 9 de março de 2010

Dias amenos #8



Depois desses problemas que tivemos com o apartamento – a nossa quarta tentativa – resolvemos viver numa casa numa rua de sombra, que derrubava suas árvores quando chovia e a luz acabava, fazendo que nós nos sentássemos no escuro e conversássemos por horas, resultando em epifanias, brigas ou nas melhores noites de sono à partir das nove e meia da noite na minha vida e nas piores insônias de João, que insistia em continuar lendo com uma lanterna azul à pilha ligada que segurava com uma das mãos ou escrevendo com letra miúda, errando as linhas do caderno.

Sem saber o motivo, com ele eu dormia bem, eu podia ver de novo a sombra na janela de uma árvore que havia do lado de fora da primeira casa que ocupei durante a minha vida. Eu me sentia pequena de novo, e havia um conforto bom em ser pequena na hora de dormir.

Ao ter todos os móveis e caixas cheias de objetos, e armários com roupas dentro de casa, percebi que eu havia edificado um mundo a mais do que eu imaginava ter construído naqueles anos ruins, naqueles anos que pareceram não ter servido a nada, além das injúrias que me causaram, e, olhando para aquilo, me senti muito confusa – como se tivesse acabado de despertar de um sono ruim que, se olhado por dentro, não parecia mais ter algum sentido.

Aquilo, para o resto do mundo, enfim, era uma vida feita.