terça-feira, 30 de agosto de 2011

Ossário (III)

Hoje de manhã havia uma menina no ônibus... Parecia que ela tinha passado a noite fora, pelo modo que ela quase dormia encostada no vidro, os cabelos presos e um cheiro de banho misturado a um cheiro de cigarro, misturado a uma maquiagem borrada num rosto meio sujo meio limpo. Estava tão cedo que o sol não tinha ainda ultrapassado a linha dos prédios, de modo que havia essa luz difusa em tudo, em todas as partes, mas em lugar algum.

Dormi pesado essa noite, digo, de ontem pra hoje. Havia algo naquela menina que me lembro uma cidade, me lembrou Berlim e outras cidades muito móveis que conheci muito mal, ou me lembrei especificamente do apartamento dele no fundo de um corredor muitíssimo comprido... Talvez tenha sido esse cabelo loiro da menina do ônibus. Outro dia Flora me mandou uma carta dizendo que viajar (como apaixonar-se) é uma experiência de morte, e talvez por isso essa necessidade de viajar tanto, para aprender a conviver num silêncio cotidiano com todo o sentido das coisas.

Passei hoje por quatro vezes em frente a um cemitério, e por volta das onze enterravam uma pessoa... Me lembro daquela viagem de trem que fizemos, e que decidimos parar no meio do caminho numa cidade que havia sido destruída na década de quarenta (não direi o nome da guerra ou da cidade) e nós víamos nos cartões postais imagens da cidade destruía, enquanto andávamos em lugares confusos e antigos. Disse que a mãe dele havia nascido lá, e havia essa noiva tirando fotos... Me impressiona como essas noivas adoram se casar entre ruínas, comentei a respeito de Ouro Preto, que havia sempre uma noiva.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Ossário (II)

Olho para o osso da bacia dele despontando quase para fora da pele. Posso esticá-lo com os dedos, como se ele fosse de balão, e ver o osso mais de perto por dentro da carne, mas tenho medo que a carne se rompa e sangre nos meus dedos um rasgo que eu não vou poder alcançar. Enquanto descansa parece novamente frágil. Os pêlos raleiam aqui e aumentam mais embaixo, engrossam, escondendo uma parte do corpo que parece ter pudor de existir. Depois, uma barriga voltada pra dentro (se ele está deitado de costas, posso chamar essa parte dos homens de “ventre?”), endurecida e um pouco estufada bem abaixo do umbigo muito infantil que ele tem, saltado pra fora, seguindo os pêlos num caminho reto até onde o peito existe, e ele se espalha. Uma linha da pele grossa brilha, repasso o dedo na cicatriz que me deu nojo faz uma hora. Acho que me acostumo com ela, longa o bastante para substituir um coração defeituoso por um coração de um morto gelado. Esse coração não é meu, diria quando eu lhe desabotoei a camisa com os dedos tremendo. Fala como quem perdeu um braço há dez anosr. Espalmo a mão e confiro que sob a pele quente e confiro se ele age pulsando como um coração normal.

domingo, 14 de agosto de 2011

Ossário (I)

Parece que os ossos dele doem mais; eu penso a cada abraço mais próximo que ele me dá, de repente, quando surge uma data especial que merece um abraço mais afetivo, diferente das saudações matutinas diárias e paralizadas.
Espero muito para abraçá-lo e quando abraço, não gosto dos ossos.
Mas ao mesmo tempo, quase gosto dos ossos porque debaixo de qualquer carne e de pé, próximo do meu corpo, os ossos provam que ele está vivo.
E quase gosto do cheiro neutro dele.
É um gosto de casa qualquer, roupa qualquer, corpo qualquer, da mesma forma que o rosto dele é quase um rosto de um homem qualquer, a não ser por uma falta de idade real, por um olho bonito, por umas expressões lentas e finas.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Sobrar tempo

(Para Pedro-Cunha que tirou esse delírio da gaveta)


As pessoas que se estabelecem nas calçadas à noite
de pé e luminosas, sugam do estômago (enquanto
buscam nos letreiros no alto a indicação do tempo)
o lodo e a areia que existe lá dentro. Não expelem,
nem quando querem, as palavras
descascadas do lodo e enterradas na areia;
e percebem, quando marca a hora,
que vai sobrar tempo, por mais que
se canse o ar com sereno ou que se desobedeça tanto
os minutos do letreiro. Só voltam para casa
quando percebem o tanto que falta
para preencher com saliva e lama
a demorada mandíbula da morte.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Livrar-se deles

Possuo, guardados dentro do meu armário, três ou quatro sacos de lixo cheios de cadernos. Estes cadernos contêm diários, esboços de contos, histórias, notas para romances, idéias, notas gerais que estou muito acostumada a tomar desde muito nova. Acontece que eu preciso me livrar deles. Por isso, estou mandando essa mensagem a pessoas que talvez possam me ajudar.

Meu objetivo não é arrumar um lugar para guardá-los, mas destruí-los da forma mais completa que me for possível. Muitos deles possuem capas forradas de tecido ou couro de mentira e outros possuem espirais de plástico ou de metal, elásticos, fitas, entre outros materiais que não são papel. A destruição tem que dar conta, especialmente, do miolo interior dos cadernos, lugar onde eu escrevi, mas se também der conta desses exteriores mais rígidos (que parecem querer evitar a minha destruição e os efeitos do tempo) eu ficaria muito agradecida. Quanto maior for a quantidade de dano, mais satisfeita estarei.

Um grato abraço,

Laura Cohen Rabelo