quinta-feira, 26 de maio de 2011

Convite - exposição no Atelier Arte Nova: Dê

Minha companheira de Atelier Dê Vasconcellos, que abre hoje sua primeira exposição individual, pediu que eu escrevesse um texto sobre os quadros dela. Fica o convite, e em seguida, o texto.




Eu te conto um segredo

Uma imagem que evidencia algo, que busca a expressão de um objeto de modo obsessivo, às vezes pode atravessar a linha do exagero e permanecer ali sem timidez. A carne se materializa para fora da folha, quase disponível ao toque, gerando uma amostra da volúpia ou do nojo que geraria a própria carne nua e viva diante dos nossos olhos. A floresta que se ergue fechada nos impede de enxergar o que está à frente, por mais que olhemos para o que está acima ou abaixo de nós. O segredo, então, torna-se imperativo e indecifrável aos olhos. As flores e a mata podem lembrar os cadernos de ilustração de algum naturalista que se embrenhou em algum lugar que não lhe dizia respeito a fim de registrar um mundo novo e diferente. Ele registra do modo exato que lhe ensinaram, ao desenhar as orquídeas do tronco contra o fundo vazio do papel branco. Ele pesquisa qual planta é venenosa, qual fruta é boa de comer. Só que aqui não há marcas de caule, raiz, pétala, folha, não há sinal das funções medicinais da planta ou da localização geográfica estrada de onde se retratou a paisagem. Não há nem mesmo o nome científico que seria dado à espécie ilustrada: resta o vazio nas bordas e do através. O segredo silencia. O corpo escancarado em preto e branco, coberto pelo véu, também relembra algo que seria exato, mas contém algum hibridismo sem solução: o corpo masculino, que recebe uma lisura de corpo de mulher, possui um véu: tecido de transparência forjada, exclusivo ao rosto de Penélope.

domingo, 1 de maio de 2011

Notícias numa fita

(Ontem de noite fui ver o trio Por um Passado Musicável - Notícias numa Fita da Luiza Brina, César Lacerda e Luiz Gabriel Lopes que tocou pela segunda vez aqui em BH. Da primeira vez em que os vi, cheguei em casa e esbocei uma historinha num papel que acabei perdendo. Ontem porém, voltei-me à memória do que eu tinha escrito e das canções novas que eles trouxeram e saiu esse texto aqui, batizado com quase o mesmo nome que eles se deram, meio contaminado pelas boas canções que eles mostraram para nós)


Sim, ver como o seu braço ia ganhando o braço inteiro do violão fazia arrepiar meu braço direito; exatamente, você curvava o corpo para cima dele, abraçando assim, e depois retornando como se apenas fosse possível ver de longe. De perto, só tateava, e sabia o exato lugar das cordas como aqueles cegos cujas casas permanecem a mesma coisa por toda a vida e cada mudança na rigidez é feita por uma presença estranha. Pensei em te escrever um cartão de ano novo relembrando alguma trova seca, imitando a letra de uma música, mas já te falei o que acho do dia trinta e um de dezembro, já te falei o que acho desse dia médium – é o único dia em que se pode acreditar que o futuro é visível ou desejável contudo na verdade, estamos onde estamos por causa da festa enquanto outros parecem se preparar para uma Grande Viagem ou se aprontar para uma Grande Mudança com calcinhas novas e capas de chuva. No final a noite sempre acaba sendo boa e patética, nesta ordem. Quando esse dia aconteceu da última vez você não estava mais aqui, trinta e um, certamente reclamei do calor quando saí de casa e olhei para a rua meio vazia meio cheia, inconstante... Ao parar na ponta da calçada, vi que perto de onde o lixo fica para ser recolhido, havia uma pilha de fitas cassetes deixadas junto a uma caixa de luz. Pela disposição simultaneamente cuidadosa e desprendida de uma matéria tão sentimental, vi que a pessoa que as deixara ali tivera, qualquer dia, certo carinho por elas, ao mesmo tempo em que este indivíduo precisava sim fazer grandes mudanças na vida e desprender-se de bens materiais que carregavam lembranças e energias ultrapassadas. Foi uma ordem da cartomante, da terapeuta ou da mãe dele para o ano novo, sei lá, por favor não me deixe ir tão longe. Derrubei a torre e revirei com o pé a pilha decadente. Havia poucas informações sobre anos, artistas e faixas nas caixinhas barulhentas. Deixei as fitas espalhadas ali, no chão, sem ânimo para abaixar e catar. A pessoa que as abandonara assim provavelmente não sabia se deixava aquilo no saco de lixo de plástico para ser reciclado ou no lixo comum (as etiquetas eram de papel, escritas com tinta preta, azul, vermelha ou verde, o que estivesse à mão na hora de gravar) e por isso deixou ali, como se o cara que recolhe o lixo tivesse que resolver os problemas de alguém que não resolve os próprios desprendimentos. Fiquei com um pouco de dó e quando voltei para a casa, enquanto tudo perfumava a tantas ceias, me escondi para buscar em caixas amareladas fitas com a voz, os braços, o violão que houvera num passado musicado, ato proibidíssimo aqui em casa, porque ano novo é olhar para frente você sabe como é. Vejo as legendas e percebo que a minha letra mudou com o tempo. Ficou corrida. Deslizei pela casa e encontrei aquela vitrola com o toca-fitas acoplado. Senti uma espécie de vertigem feliz quando vi que ele ainda vinha à vida quando colocado na tomada, mas morri quando percebi que as caixas de som haviam ficado na sua casa e eu nunca me lembrei de pegar. Neste ato eu e você nos comunicamos em silêncio, de longe, e eu pensei em te ligar e desejar feliz ano novo, talvez fazê-lo e contar esse caso estranho. Mas fiquei imóvel. Quase me ajoelhando no chão, botei pra tocar a fita que tinha você gravado e fui escutando o ruído da máquina funcionando e sentindo o seu cheiro dentro do cheiro contaminado que as coisas velhas têm, pensando em quanto tempo a rouquidão da poeira conseguiria afogar suas notícias, como se assim ao longe em tempo e quilômetro, através da passagem da fita, eu pudesse falar com você.