sexta-feira, 30 de abril de 2010

noiva




11- Nota de aula: Desterro, degredo, exílio, ocasionado pelo pecado original.

12- Quando eu comecei a namorar o seu irmão, agora meu noivo, você já namorava Camila, aquela jornalista mal comida (perdoe-me a expressão, não achei outra, se ela é a sua mulher, ela não pode ser mal comida). Ela sempre me teve aquele nariz arrebitado de cachorro de pedigree, aquela cara enjoada, eu nunca entendi bem. Você, mesmo depois de ir morar com ela, nunca usou aliança nem tratou-a como esposa. Era sempre "minha namorada". O tempo passa. Quando vou me casar com o seu irmão ao modo que sua mãe sempre quis que os filhos casassem formalmente, Camila me acompanhou durante meu dia de noiva e só falamos de bobagens ilustradas nas revistas femininas. Camila ficou me olhando enquanto via a minha pele sedosa sendo coberta pelas camadas brancas do vestido de noiva.

13- Camila e Katyllene são muito parecidas, tanto em seus métodos quanto em sua maneira lânguida (deus, como eu odeio essa palavra) de prestar atenção nas coisas. Há suas diferenças. O pescoço de Camila cheira a rosas e nós duas usamos o mesmo hidratante em toda a pele depois do banho. Katyllene fede a merda, a sebo, sujeira, cebola, mijo, esgoto.

terça-feira, 27 de abril de 2010

quinta-feira, 22 de abril de 2010

um noivo



7 – Na maior parte do tempo eu esquecia que tinha um noivo e o que me lembrava eram coisas simples, como um bolo de cartas, ou quando eu olhava para a minha mão. A aliança fina no dedo fino, quando eu cheguei depois das férias, as meninas viram logo que eu deixei as malas no umbral da porta e então tiveram que estourar champanhe e cobrir minha cabeça com tule branco do forro de um vestido de uma de elas. Ficamos bêbadas, elas mais que eu, meu deus, como ficam insuportáveis quando ficam bêbadas, como falam alto e me abraçam justo quando eu não queria falar, apenas beber algo quentinho e descansar da dor nas costas da viagem.

8 – Katyllene diz que em breve também vai se casar com seu Jesus Cristo amoroso. Vera nos ignora e julga.

9 – Meu noivo costumava escrever mais, muito mais, agora mandava cartas pequenas e iguais uma às outras – saudade, mal espero, amo, adoro, flores, olhos, cheiro – de uma página só. Não reclamo, apenas constato, já que escrevo muito menos do que ele.

10 – Casar-se por conveniência é um dos grandes objetivos das mulheres. Se apaixonar e amar, meu Deus, não há coisa que dê mais trabalho. Amar, talvez, as camisas de um homem seja melhor, e passá-las com o esmero que eu usaria para amar alguém.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Mas como é que alguém pode se chamar Maricota?



Eu quero plantar uma árvore com o seu nome por que eu gosto da sua voz, das suas mãos, do seu cabelo, dos seus sapatos e meias. Eu gosto da sua mãe; eu gosto dos vestidos que ela faz pra você usar, gosto dos seus pés descalços. Eu gosto até mesmo da sua tristeza por que ela deixa seus olhos opacos e me dá vontade de querer muito ver o que tem dentro – atravessar depois dos óculos grossos uma pupila preta e a outra pupila preta envolta pela íris bonita, imaginar o que tem dentro disso, uma cidade que cheira a maisena, se criam muitos bichos, se misturam sotaques nas fronteiras, se vai em busca de um sertão de dentro, bem de dentro, por que a gente sabe que essa rachadura na terra colorida é o pé da árvore que eu quero plantar com o seu nome para depois escrever cada letra no tronco dela, senhora.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

ambulâncias



4 - As ambulâncias, quando levam um doente grave de volta para casa, se locomovem de uma maneira excepcionalmente vagarosa. A sirene, silenciada, restara na alerta de um vestígio de luz vermelha girando enquanto ainda havia sol. Eu estava seguindo um desses veículos vagarosos às cinco e meia de uma tarde engarrafada, com carros buzinando atrás. Eles que buzinavam não percebiam o que estava acontecendo. Eu estava levando Vera para morrer em casa.

5 - Olho para Clarissa e vejo tudo que quero ser um dia. Talvez, por hábitos solares do bom humor aos quais sigo inconscientemente e de maneira devota, o amor ao marido, um vestir-se bem mesmo com essa idade desleixada da velhice, aposentada e feliz, de quem soube o que queria e perseguiu isso adiante. Clarissa recusa a beleza que ela acha que não tem enquanto eu desejo envelhecer linda como ela.

6 - Eu me lembrava de outras ambulâncias deixando velhinhos em macas na porta de suas casas, com seus lençóis brancos e seus respiradores artificiais. Enfermeiros arrastavam cadeiras de rodas. Um bairro de velhinhos, no domingo eles saem em passos curtos, desafiando a loucura em roupa limpa, empunhando o cheiro dos jornais recém impressos e do pão tão prontamente assado.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Quasimodo





2- Há alguns anos também ajudei Vera, a escritora sapatão, que me ensinou três línguas. Na primeira, eu viajava pelo mundo e atendia ao telefone. Na segunda, escrevi seu inventário. A terceira, porém, era a língua do amor e nós nos forçávamos a falá-la todo o tempo, com a dificuldade de quem balbucia. Eu escondi as jóias de Vera do holocausto quando protelaram sua morte com a medicina,enquanto a moribunda tratava de esmaecer.

3- "Por que Quasimodo é o nome de tudo aquilo que desaba".

terça-feira, 6 de abril de 2010

.

eu vi, eu vi uma casa afundar na terra



a terra engolir uma casa

sexta-feira, 2 de abril de 2010

.


Estas são as pernas, os lábios, os pés. Por baixo, o mesmo osso, por cima, se estende esse manto gasto e envelhecido, que não me parece tão horrendo já que também alcanço a mesma idade. Da primeira vez numa cama, você se lembra, pensei que íamos chorar, mas agora há uma espécie de pó sobre todas as coisas que nos impede qualquer reconhecimento. Nossos cheiros tinham nome. Uma rua, o cenário de um amor perdido. Nem as células da nossa pele são as mesmas, as antigas, sensíveis ao seu tato, táteis à nossa sensibilidade, de tantas noites em que nos seguramos acima de grandes espaços ocos. Este corpo não é o que te sentiu. É a mesma árvore, mas com o tempo – contado em anos desde a data gravada dentro de uma aliança de ouro – as folhas caíram e novas cresceram, enquanto as antigas ainda devem se decompor em algum lugar onde sequer sabemos onde fica.