domingo, 29 de agosto de 2010

fumaça



Jean-Luc, hoje eu não tenho vontade de fazer nada. Preciso me perdoar, ou, bem, necessito lutar contra essa dominação esgarçada em permanecer estancada na poltrona, olhando para o dia, fazendo dele o meu shabat errado e criando as leis que vou cumprir até o fim da manhã, quando a fome for maior que a placidez e decidir que devo fazer um almoço ou algo que não deprima tanto o domingo. Augusto ainda dorme, é um aborrecimento, há pouquíssima gente acordada quando deveria estar dormindo, isto não é compaixão, estão todos perdidos como eu. Escute: O menino do nono andar aprende flauta doce. Sinta: este cheiro de cigarro – alguém fuma no corredor do prédio. Uma vez você me contou, enquanto fumava, perguntaram a Juan-Miró, o artista, se ele fosse politicamente preso e tirassem dele todos os materiais para fazer a pintura dele, e você disse que o Miró disse “não importa”, você tragou, e disse que o Miró disse “eu posso pintar”, soltou a fumaça enturvecida no ar, “com a fumaça do meu cigarro”.

Escrevo hoje também uma carta ao Augusto: escrevo a ele, tenho vontade de te levar a todos os lugares em que você quer muito ir, e quero ir com você a Buenos Aires, Barcelona, São Petersburgo, Rio de Janeiro, quero ficar com você dentro da minha casa, mas você sabe, aquilo “todas as cartas de amor são ridículas”, e a lerdeza hoje é tanta que nem me lembro de qual heterônimo do Fernando Pessoa escreveu isso. Foi o mesmo heterônimo que escreveu “já disse que não quero nada!”, disso tenho uma certeza quase exata, mas me foge, me foge o nome, me foge Portugal, me foge tudo. Uma carta é quando a gente passa a existir para o outro: isto veio escrito no meu livro preferido. Uma carta é quando a gente existe em função do outro. Hoje, doeria muito reescrever palavras do meu livro preferido, mas enquanto escrevo a você, Jean-Luc, não dói tanto por que uma carta é sair de si e ir para uma cabeça que a gente acha melhor que a da gente. É um repouso.

2 comentários:

  1. um esconderijozinho bem lá no fundo.
    quase seguro.

    bom moça.
    bijetas!

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  2. Laura sempre presenteando-nos com reflexões em ótimos textos!

    Miró fazendo arte com fumaça de cigarro é o máximo da ilimitação artística, adoro isso! :)

    Bjs!!

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