sexta-feira, 16 de julho de 2010

história do fim


(L., você me lembrou hoje no café de que eu tinha escrito um conto para você, e aqui você o tem. Este é o primeiro de todos, e ele sozinho haveria de se chamar História do Fim, mas aconteceram uns desdobramentos, espero que você entenda, e esta moça – o nome dela é Maria Lúcia, Malu ou Marilu, como alguns a chamam – acabou por escrever mais de uma carta a seu primo e confidente Jean-Luc. Porém, aqui está a carta primeira, longa, o conto original, claramente corrigido, mas ainda sincero. Um abraço apertado pra você aí, e um agradecimento pelas palavras que você me deu depois que eu cheguei em casa. Não me roubou um momento feliz e, em contraponto, me presenteou com alguns minutos da mais sincera alegria de reafirmar como você escreve bem.)




Minha planta está doente, Jean-Luc.

Não – não, eu minto, esta planta não é minha, mas eu acabei por chamá-la assim, como uma posse ou uma coisa que eu amava bem quando resolvi deixá-la vivendo em minha casa. Não a recebi como um presente nem paguei por ela, tampouco lhe dei um nome, mas me afeiçoei o bastante para afinal regá-la todos os dias por volta das seis da tarde, quando abandono na área de casa qualquer roupa suja de um dia de trabalho e, às vezes, fumo um cigarro (aí está, cedi à propensão completa ao tabagismo em favor de sua satisfação) quando as coisas não andam muito bem. A planta, moribunda, é do meu ex, um detalhe vivo que ele se esqueceu de levar deste apartamento. Há muito tempo, quando ele me deixou, pensei em jogá-la fora (ou, mais dramática: quebrar o vaso, arrancar as folhas e atear fogo aos galhos), mas percebi que isto seria uma injustiça a outro ser. Era como devorar o filho alheio. Então, resignada (perdão pelo paralelo, mas era “como quem engole veneno”), passei a regar a terra como se eu não tivesse tido escolha. Houve a resolução de que um dia eu deveria levar o vasinho de volta para a casa do meu ex, mas acreditei que seria um feito excessivo, ele provavelmente não se lembraria da planta (a História se esquece do homem e os homens retribuem esquecendo a história, trate de manter sempre disso em frente, Jean-Luc) e de repente os dias começaram a ficar chuvosos demais. A plantinha foi gostando daqui e agora, além da água às seis, tenho que lidar com esta doença ainda sem conseguir dizer que é uma doença e que pertence a mim.

Reparei que da última vez que você me escreveu (uma mensagem no domingo dezesseis de junho às oito e catorze da noite) havia um símbolo de ponto e vírgula entre as frases e achei engraçado por que Lilya tem o mesmo sinal tatuado no pulso esquerdo. Você percebeu este detalhe? Foi por isso, não foi? O pretérito mais-que-perfeito é o tempo verbal preferido da Lilya, enquanto o ponto e vírgula é o sinal preferido dela, você notou, não notou? Pulso fino de moça fina. A história não é tão refinada assim, prometo: Lilya tentou se matar e depois que sobreviveu, mandou bordarem aquele ponto e vírgula bem em cima da veia viva do pulso; se você quiser sentir o pulso dela batendo está ao alcance da sua mão – encoste os dedos sobre a pele e perceba aquela vibração que ensinou o ritmo aos homens, sim, ela existe, esta mulher está viva. O suicídio foi a pausa que ela teve que tomar; talvez você tenha que entender essa pausa enquanto estiver interessado nela. Seus interesses, Lilya, um café, uma pequena notícia, uma breve fofoca, uma troca incessante de discos e recortes de livros, ou cartas breves (nem tanto...) escritas um ao outro entre porres e partituras, ou para me entregar um presente de aniversário velho e me fazer sorrir em frente a algo que eu nunca esperava que você faria. Somos mulheres, Jean-Luc. Não existimos. Tudo nos afeta.

Falando dos outros – a irmã mais jovem da Lilya, a Gisela, aquela que é orientanda da sua mãe, acabou de pôr fim em um namoro de quatro anos. Estamos todas um tanto sentidas, é necessário frisar. O rapaz se chama Cadu (Carlos Eduardo) e é um grande amigo meu. Ele está terminando um mestrado em história e a Gisela, como você sabe, logo se forma em arquitetura. As dissertações, os TCCs, os empregos escravos, acho que quando tudo aquilo acabasse (acredito que eles mal sabem o que é tudo aquilo), planejavam se casar, ou pelo menos ir morar junto, como é bem de praxe entre nós, liberais, estudantes de ciências mais ou menos humanas e seus desdobramentos, pessoas que se consideram mais livres que as outras, de certa forma; habitariam um apartamento de primeiro andar, subvalorizado, numa região que fora chique em tempo áureos, numa rua de velhos, num bairro de árvores, mas isso não vai mais acontecer. Eis o fim. Eles estão terminados, senhor, e o futuro prescrito nos sonhos pré-conjugais serão Nada a partir de agora.

Sabe o que mais me impressiona nisso tudo? Eu passei o último fim de semana com Cadu e Gisela enquanto eles ainda eram um casal. Na sexta, Cadu buscou Augusto e eu em casa e nós fomos ao teatro com a Gisela, e alguns amigos (o Flávio inclusive perguntou por você e eu disse que estava bem e duvidei silenciosamente de minhas palavras enquanto eu pensava em seu trôpego e gago coração, desejando alguma doçura de Lilya). Ele havia acabado de fazer uma farta barba que mantivera por alguns meses e se parecia com um moleque, irritado por que a Gi se atrasara para vestir na indecisão das mesmas roupas escuras, um costume de todo fim de semana. Era uma peça sobre fome e merda. Boa, mas não excelente. Depois, de carro, fomos àquele bar que você gosta, onde a gente pode ouvir vinil a noite toda. Falamos todo o tempo de viagens bebemos cerveja, comi alguma coisa que eu não lembro muito bem o que era. A mãe do Cadu, por volta das dez, ligou e pediu para falar com a Gi. Gisela havia acabado de voltar da Espanha (você sabe disso, não sabe?) e trouxe um azeite especial para a sogra. Ouvi agradecimentos do outro lado do fone e as duas conversaram por um bom tempo, sem faíscas, e eu sempre soube que o relacionamento era assim, gente madura. Ficamos ali até as duas da manhã, acho que o Cadu, o Flávio e o Guto queriam ficar mais, enquanto Gisela e eu bocejávamos já fazia uma hora. Nos deixaram em casa. No dia seguinte, Augusto fez um almoço, matamos umas garrafas de vinho. Fazia frio. (Às onze da manhã fiquei parada no corredor, com o telefone na mão, pensando se eu deveria te ligar, mas resolvi que não, melhor não). Ficaram todos aqui até quase sete da noite. Então, depois que as mulheres lavaram os pratos enquanto os homens conversavam sobre música na sala, todos partiram (inclusive o Augusto, a mãe dele tá no hospital, mas não é nada grave não, juro, ele só foi dormir lá e no dia seguinte ela recebeu alta e nós recebemos paz) me vi sozinha com a planta, que já dava sinais de estar mal. Enfim: tomei um banho e dormi bastante. Cadu e Gisela terminaram quando eram quase oito deste mesmo dia, dentro do carro estacionado na porta da casa dela. Talvez tivesse sido melhor deixar essa injúria para o domingo. Domingo, dia de injúria, Gisela passou chorando, mal dormiu ou dormiu muito, não sei, não falei sobre isso com ela, apenas conversamos o enorme sentimento de perda que há nas coisas. Aquilo não foi só se despedir de um namorado, foi dar adeus a vida que viveu nos últimos tempos. É como se a gente morresse e chorasse o próprio luto antes de (ai, como eu odeio a superação) nascer de novo.

Da última vez que vi Gisela, olhei para aquela cara ainda com o semblante consumido do choro magoado da separação, recebi um abraço bom e depois, mais tarde, num desses silêncios-pausa de quando estávamos conversando, ela levantou os dedos e deitou-os sobre o decote da blusa e meio desolada disse uma coisa muito horrível como “ai, meu coração”. Não tive coragem de comentar a beleza daquele ato – verbalizar aquela dor que não é física, mas que acaba por se desdobrar naquilo, o órgão do pulso. Depois, perguntei à Lilya como ela estava com isso tudo e ela me disse que Gisela “estava longe”. Pelos próximos dias, a Gi vai sentir uma angústia repentina e decrescente ao entardecer. Hora da nuvem-negra, ela vai repetir enquanto quase tem uma parada respiratória. Depois, ela vai descobrir que ao tomar um banho quente nesta hora e esfregar a pele com uma bucha vegetal bem dura, a angústia se dissolvia e começava a sair de cima dela. Por um tempo também ela terá medo de freqüentar os mesmo lugares de antes, os cinemas e bares, com medo de topar com Cadu (e uma eventual outra mulher que ele haveria de experimentar...), medo de andar na rua sozinha, medo de falar o nome dele em voz alta, ou de se esquecer, de repente e para sempre, o número do telefone da casa dele. Sei (sabemos) que em pouco tempo essa angústia irá desaparecer e depois que um pouco de tempo passar, ela se lembrará da existência de Cadu com pouca freqüência, com frases, objetos perdidos, fotografias, aquela música que eventualmente tocava no rádio e ele gostava muito. Então, Gisela há de rir de si quando falhar ao se lembrar do rosto, da voz e até mesmo do nome completo de Cadu. As mulheres não se esquecem com tanta freqüência, mas elas normalmente superam a história (superam, de novo, que inferno) antes que a Histórias as supere. De Cadu, porém, recebi um vestido escuro e florido que pertence à Gisela e que ela esqueceu na casa dele. Senti compaixão e resolvi lavá-lo para que no tecido não reste coisa alguma dos dedos de Cadu, do perfume da casa de Cadu, meu deus.

Digo, não é à toa, Gisela e Lilya têm os pés calejados desse terreno do fim. Não só as duas, mas principalmente Lena, a irmã mais velha, Lilya já me contou a respeito do pai das três. Falou que quando ele e a segunda mulher (o trio de cromossomos XX é fruto da primeira mulher de todas) se divorciaram, foi a Lena quem ajudou a encontrar uma casa, tratar do aluguel e dos móveis, já que a ex, aquela puta, entre a depressão e os maus-hábitos alcoólicos do pai, acabara por levar tudo sem nem ter um advogado direito. Lena escolheu um bom lugar, um apartamento de primeiro andar, subvalorizado, numa região que fora chique em tempo áureos, numa rua de velhos, num bairro de árvores, lugar bem parecido ao sonho passado de Cadu e Gisela, temos que admitir. Pois, então, passaram-se três meses daquele divórcio difícil, palhaçada, e o pai já os recebia para um almoço de domingo. Nesta época, Lena já era casada e grávida celebrada de seis meses e duas semanas, cercada de mimos e roupinhas de bebê pelo futuro avô, carinhoso e amável, aguardavam o primeiro de uma boa linhagem de netos, já que o homem tinha cinco filhos, três desta, dois da outra, e isso sim, isso sim era constituir família. Então, numa terça-feira qualquer, Lena passou ali para deixar no armário uns lençóis que havia comprado (até eles, a ex-maldita...) e ao entrar no quarto do pai, encontrou um par de sapatos de mulher à beirada da cama. O chuveiro estava ligado e a porta estava fechada. Lena, puta, perguntou o que era aquilo. O pai ficou sem graça, sim, enquanto os filhos ainda estavam sem chão, ele arrumara mais uma mulher onde cravar os dentes.

Então, eu me lembro de você no meu sofá. Você falando que ainda tem medo de dormir por causa do divórcio dos seus pais, malas feitas à noite. Aquela briga que quebrou o dente do seu irmão mais novo ficou na minha mente, num resquício de você falando de como era triste, de como foi difícil superar aquilo, e talvez você nem tenha superado direito, seu fraco, ainda tem essa úlcera no estômago e uns remédios para dormir de vez em quando, principalmente aos domingos, com os cigarros cubanos e um monte de sambas, e um monte de palavras que ainda não foram escritas. Você me disse que viver testava sua paciência, eu disse que o abandono era uma palavra legitimamente espanhola enquanto você insiste em estudar alemão, francês e o piano, seu grande erudito. É, querido, talvez nós nunca esqueceremos. Eu respeito o nada, este grande Nada que você ama, seu infinito guloso, mas você sabe, nem aquela planta viveu para sempre na minha mão, nem aquele casal que a gente achou que teria filhos cumpriu uma reta. Agora olho a planta, o vestido de Gisela, olho o sofá em que conversamos naquela noite. Penso em pegar o telefone e avisar meu ex depois de quase três anos sobre o estado de saúde da planta dele. É, talvez eu devesse avisar a ele. Talvez ele já se esqueceu dessa planta mesmo, para sempre. Mas eu nunca sei o que fazer com as coisas quando elas morrem.

8 comentários:

  1. que bom isso!
    e que bom o template do estômago ^^

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  2. Muito legal!

    Acompanharei seu blog!

    Sou afeito a contos e folhetins, inclusive escrevo sobre uma Mórbida Investigação... que tem me colocado em cenários cada vez mais instigantes.

    Parabéns pelo blog maravilhoso!

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  3. Li com o coração na mão. ODEIO VOCÊ, LAURA COHEN!

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  4. Laurinha,
    Você sabe que eu não sou de fazer comentários, tenho preguiça, mas esse não deu para deixar passar. Corre um sério risco de ser o meu preferido por aqui.
    Fiquei tentando escolher a melhor passagem, para te falar depois pelos corredores, mas não deu. Lindo do princípio ao fim!
    Parabéns, mais uma vez!
    Beijos,
    Lorena

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  5. é doídão. de dor, não de loucura.
    Acho que as palavras devem te amar, Laucôu.

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