segunda-feira, 23 de novembro de 2009

1991

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Todas as vezes em que eu começava a buscar lugares diferentes, pessoas diferentes, eles me impediam falando de suas palavras - o menor era a religião negra a qual nos entregávamos através dos anos frios, muito mais era o meio recluso no qual vivíamos, minha mãe queria a minha segurança (o mundo é mau), meu sufocamento, o meu pai já habitava aquilo. Está bem aqui a imagem recorrente do passado: estou sentada no banco de trás do carro, papai dirige, minha mãe está ao lado – os dois estão em silêncio e o rádio está funcionando num volume tão baixo que ninguém escuta nada de verdade. Faz frio, está nublado e escurece mais cedo que o normal. Aliás, a tarde toda, depois da uma e meia, é um longo e lento escurecer. Tenho dezesseis anos ou um pouco mais que isso. O ar que entra pela janela aberta tem o cheiro das árvores lá fora, eu sinto que a terra está úmida como se ela fosse um bicho que habita todos os lugares. O corpo que temos é do mundo, minha mãe dizia. Não é nosso, nem de Deus, nem do inferno, é da terra, apenas a terra, que nos serve e nos consome. Eles estão me levando para conhecer um jovem rapaz com o qual no futuro eu vou me casar. Trocamos cartas. Ele copiava trechos bíblicos para mim e me fazia perguntas. Perguntava sobre os meus gostos. Ler, respondi, ver filmes. Gosto de cozinhar também, minha irmã gosta dos doces que eu faço. Na sala da casa dele, os sofás estampados, o papel de parede listrado com duas cores claras imperceptíveis como o som no carro. Ele toca uma música para mim, meus pais, os pais dele, olham orgulhosos, que eu me apaixone e aceite o mecanismo complexo da música, era o meu destino casar com um rapaz daqueles, cabelo escuro, tão jovem quanto eu. Eu reparo em tudo, no cheiro das flores, no gosto do café, na raiz escura da cabeça loira da mãe dele: está caindo. Sinto vontade de tirar os sapatos, mas me comporto. De dentro do carro, antes daquele encontro, me lembro de sentir a coisa fria depois quente depois fria de novo dentro de mim, e fico dois segundos sem respirar. Minha mãe não sabe dos dias livres do fim de semana, minha janela do primeiro andar, eu e as meninas pulamos janelas, saímos, bebemos, ficamos até tarde na rua, acordamos aos risos e olheiras. Não sei o que é, não tem nome, nunca nos falaram, mas está lá, eu sei que está lá, olhando para mim, mora no horror.

4 comentários:

  1. É tudo tão gostoso de ler.... mas sinto falta de uma linha que permeia e alinhava tudo.

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  2. e aquela parte que fala que nosso corpo naõ é de ninguém senão da natureza que nos serve e consome???
    velho...to de cara

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