sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

drástico

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O seu tio se matou num desses dias densos que nublam a cabeça do mundo. Pela manhã, caiu uma chuva fina, e essa chuva continuou caindo naquela intensidade egoísta e melada, que arrepia os cabelos das mocinhas e faz com que nós precisemos do uso intenso e recluso de casacos, sapatos fechados e guarda-chuva. Esse frio malvado de novembro que faz esquecer quão perto o verão está e joga na nossa cara quão cansados estamos. Depois das cinco da tarde, a chuva engrossou muito, transformando-se naquela ruína de destelhar casas e arrancar membros de árvores. Entre essas duas chuvas, houve um intervalo de meia hora em que tudo cessou, e um pedacinho do sol ameaçou aparecer no céu esbranquiçado. Exatamente nesta pausa, o seu tio preferido levou o revólver do seu avô até a parte da frente da Igreja da Boa Viagem e atirou no céu da boca. A chuva recomeçou logo depois do tiro, quando as pessoas enxergaram a morte e providenciaram logo sua ocultação. A chuva caiu forte sobre o tecido que haviam providenciado para cobrir o cadáver, e a chuva escorreu o sangue e a massa encefálica que atingiram a parte de fora da igreja. Encontraram um telefone dentro da carteira dele e ligaram – era a casa da sua avó, aquela que gostava de andar sem roupa no apartamento em São Paulo, que te levava de manhã pela mão através da cidade nas suas férias de janeiro e comprava churrasquinho grego e aquele jornal tosco, sensacionalista, encharcado de sangue, o Notícias Populares, você ainda tem saudade dela quando vê por acaso numa banca de revista. Do enterro, você não se lembra muito, mas recorda que estava chovendo e que duas tias vestidas de cores escuras guiaram uma de cada lado sua avó, de vestido vermelho sob uma sombrinha verde através do cemitério. Neste dia, no meio daquela tempestade que atrapalhou a noite da sua família, quando você já tinha três mil setecentos e trinta e sete dias de vida, exatamente neste dia, eu nasci.

5 comentários:

  1. Memórias ou fição? Tanto faz, me impressionou.

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  2. E milhares de pessoas nasciam e milhoes de pessoas morriam e trocentas mil trepavam e geravam mais pessoinhas que iriam nascer, exatamente nesse dia.

    dramas à parte, adorei o texto e esse desenho, vc tem um traço tao expressivo!

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  3. E tudo é sempre um (re)começo.

    Lindo!!

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  4. A massa encefálica na parte de fora da igreja. Cacete: bem vindo ao Ponto de Partida, ou mundo de "Laurinha" (se é que posso te faltar com esse respeito)
    Sério,
    tu desenha com as letras e pinta com a pontuação!
    - e ainda me faz escrever esses comentários entorpecidos -

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