segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

dezembro

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Estávamos andando lado a lado, e dessa vez a chuva era tão fina que nem precisar abrir o guarda chuva nós precisamos. Meu olho procurou o seu, você interrompia a frase todas as vezes que eu te olhava por muito tempo para recomeçar sete ou oito segundos depois, quando o sinal abria e nós podíamos atravessar. Gaguejava. Falou a mesma coisa da minha irmã, duas vezes. As casas, deste, do outro lado da rua, eram antigas, algumas estavam abandonadas, e dessa vez eu te interrompi falando dos ladrilhos xadrez de vermelho e branco no chão que aos poucos ia sendo consumido por um mato injusto que crescia no jardim esquecido. As casas, suas varandas, seus cortejos. Pensei na cintura alta das saias das moças e do tecido dos vestidos, e dos presentes de casamento. Eu e você, nossas alminhas velhas, nossos gostos pela memória, pela delicadeza. Eu disse, que lugar longe para estacionar um carro, você disse, se eu fosse estacionar mais perto teria que ir até o centro e voltar, mãos únicas, mudanças de sentido. Mas não foi uma reclamação. Não entendeu. Eu estava gostando daquela caminhada, daquelas casas. Quanto tempo nós temos? Você perguntou, eram sete horas da noite – na verdade, tarde, por que o dia ainda estava claro ao modo da chuva. Você disse que queria me mostrar as suas casas preferidas no seu bairro. Verão aos vinte graus, dias e dias daquela precipitação inocente. Eu estava morrendo de frio nas pernas, apesar da meia, dos sapatos, o erro de um vestido e de um casaco fino demais para passar o dia todo fora com você. Parecia com alguma das histórias que eu tinha escrito no estúdio, eu queria ter mencionado, em algum dos meus cadernos. Na minha casa, uma prateleira deles, ou mais. Vinte anos de esboços, almejo te ver imaginando. Tenho medo de que os esboços caiam nos seus dedos, ou coisa parecida, mãos bonitas folheando meu passado. Garatujas. Você abre a porta e entra, abre minha porta por dentro pra eu entrar. Eu entro. Você vai ligar o carro, fazer alguma coisa assim, nos próximos quinze minutos, você pretendia me mostrar as casas, então eu vou, eu me inclino, toco sua barba, e você vem de repente e me dá um beijo atemporal. Um carro antigo, numa tarde antiga, num bairro antigo, eu já não posso mais dizer em que ano estamos, que idade temos, o quão nosso gesto parece ser proibido e livre ao mesmo tempo, as gotas da chuva engrossam e começam a descer no pára-brisa que aos poucos se molha por fora e se embaça. Minutos antes estávamos olhando pelos vidros da sala, a gente olhou como a chuva deixava tudo mais real lá fora, parecia uma fotografia; a constatação foi sua. Quando eu começar a perder a memória de novo, você repetirá esse caminho, repetirá suas falas para que eu repita as minhas em seguida, repetirá cada gesto e repetirá um beijo complacente para mim.

3 comentários:

  1. Me soa como cem anos de solidão, ou melhor como o crepúsculo do patriarca do Garcia Marquez
    Quanta paixão num arroubo sem paragrafos, um fluxo continuo e deleitoso de sentimentos, imagens, sensações!

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