terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Marisa



(Para Ciro Trevisan)

Ela abandonou a leitura do meu livro preferido dando justificativas ralas, arrastou-o em minha direção, parecendo ser gentil, mas não foi intencional. Meio resguardada, colocou mais um grampo no cabelo e não olhou para mim, apoiando a mão no queixo e o cotovelo puído na mesa – rua sem trânsito, paraíso das três da tarde, ela disfarçando a blusa rendada do pijama com sutiã colorido por baixo (eu já decorara todas as dezoito cores e estampas), casaquinho de lã embolotada por cima. Seria mais fácil se ela gritasse, como sempre, e jogasse coisas em mim, recorrendo à pilha de revistas femininas compradas por nós duas compulsivamente, capas ideais, sapatos ideais, sexo ideal, cor pra cabelo ideal para a sua cor de pele e tipo de rosto, promessa política solene de satisfação, sucesso profissional, receita de brownie. Seria mais fácil ver Marisa esgoelando morrendo como-sempre, jogando coisas em mim como lhe ensinara o cinema – mas estava caladinha, caladinha qual criança entediada a ponto de chorar, expelindo quantidades paquidérmicas de meleca verde pelas narinas. Olhei para cima: era o mesmo restaurante com teto de vidro no qual nós duas nos sentáramos há quatro ou cinco meses arregaçados fodidos e listamos nos guardanapos os nomes de todas as pessoas que gostaríamos de atirar de um prédio de vinte andares. Marisa, que nome estranho esse seu, mistura de maré, maresia, brisa, inadequado para uma paulistinha sufocada que jamais tirava a maquiagem para dormir (na manhã seguinte reclamava de como a pele estava uma merda, olha só, quase vinte e três anos e essa espinha aqui, tô um panda, olha o rímel que bosta) e embrulhava maçãs verdes no papel filme e as colocava dentro da bolsa de pano colorido para aquele intervalo insuportável entre um corriqueiro ou outro, enquanto espera o próximo metrô e toma sem parar um gole de água podre da garrafinha remelenta há meses levada por aí durante todas suas cruzadas pessoais. Cólica, dor de cabeça, remorso. De repente a vida seria um flash do tempo passado com Marisa. Acendeu o cigarro (“muletas para os gestos”, repetiria, repetiria), pediu desculpas pela manchinha ali nas primeiras páginas, era café, tossiu, um pequeno acidente, espero que você não note, não vai notar, vai?
Nosso primeiro encontro foi Interior/dia, Marisa classificou, disse que poderia fazer um curta dele quando não tivesse criatividade para inventar nada e colocar o meu nome em branco numa tela escura, assim, no cantinho, logo que a história acabasse. Interior/dia. Eu a conheci no metrô, o interior, enquanto dia era de chuva, a vi pela primeira vez quando um trem passou e ela desceu, atrás de mim, enquanto eu esperava. Vi aquela coisa passando, moça baixinha e branquela, olhos pequenos e sérios, cara de foto 3x4, o mau humor sublime, latente, divino, cabelo curto mendigo indie sem pentear sem lavar, tinha uma cor estranha que depois ela me explicou ser conseqüência uma sucessão insana de tintas pretas, verdes, laranjas, ruivas, amarelas; água oxigenada o bastante para descolorir os pêlos das coxas das mulheres do prédio inteiro onde eu morava. Marisa usava sapatos de plástico esquisitos, camiseta preta deixando alça de sutiã liberta, saia de pano até o joelho, terminando de desbotar, e dava mordidas desinteressadas na superfície verde desamadurecida de uma maçã, mastigava, cheia de tédio, olhava no relógio o horário previsto, ia e voltava por poucos metros do corredor, perto de mim. Perdão, eu repetirei, tomada após tomada, até que fique perfeito como se fosse real. Quando o trem chegou, trapaceei, entrei no mesmo vagão que ela, que sentou sem me notar num cantinho no sentido contrário da partida. Tirou da bolsa, previsivelmente, um livro. Me aproximei. Também previsível, como ela, tentei fazer um sorriso bonito e perguntei o que ela estava lendo. Ela levantou a cabeça. Não riu. Não é legal – disse – eu estudo cinema. Parecia legal – explicou – mas toda teoria é uma chateação. Teoria dá câncer. O resultado fica até bonitinho, aí vai, mas é um saco fazer cinema. Marisa era assim, a gente dava atenção, abria cortina, ela falava sem parar. Naquela tarde mesmo fomos parar num boteco e ela me derrotou duas vezes na sinuca, enquanto destrinchou toda sua vida para dentro de meus ouvidos comendo um hambúrguer no tal restaurante de teto de vidro. Toda vida para dentro dos ouvidos, e dos ouvidos, sem digestão, direto para o meu peito e meu estômago, que passaram a doer eternamente todas as vezes que eu pensava nela. Ao fim daquele dia, que virou tarde, e logo virou noite, levei-a para o meu apartamento, como se eu fosse um grande homem comedor, e de fato, eu era mais mocinha indefesa do que ela. Fui aprendendo.
Marisa era a repetição avassaladora de clichês – óculos escuros de noite e o drama da unha pintada de vermelho; ela pintava hoje e três dias depois, já descascando, roída e impaciente e comprava por um e noventa e nove outro tom de vermelho muito semelhante ao anterior e repintava as unhas enquanto ouvia música pelos fones no volume máximo e cantava baixinho junto, desafinada e irritante. Marisa infestou meu apartamento com os vidrinhos daqueles esmaltes vermelhos, eles aguardam uma dispensa endurecidos na pia do meu banheiro. A vida dela era uma baldeação contínua e o mundo seria sempre um lugar pior todas as vezes que ela perdesse na sinuca.
Marisa foi e, exaustivamente previsível falou que não dava mais. Me deixou com uma nota de cinco e o resto do maço de cigarros – dois últimos, úmidos, que fumei chorando. Duas semanas depois, dentro do metrô, eu procurava minha carteira e encontrei por acidente a maçã verde enrolada em papel filme numa das bolsas que eu lhe havia emprestado e ela devolvera pela separação. E só. Depois daquela tarde passei a apenas procurar desesperadamente por Marisa nas mulheres e nos homens, não importava sexo ou idade, ou as intenções, eu tinha que encontrar Marisa em alguém. Hoje em dia ainda freqüento com assiduidade festivais de cinema, querendo ver meu nome em branco no canto da tela preta, assim que a história acaba e se iniciam os créditos, num filme sobre lésbicas onde há um primeiro encontro do metrô. Ela vai ver. Vou pôr nos postes. No verso dos maços de cigarros. Vou fazer armadilha de rato com maçã verde dentro. Vou dar recompensa.
Eu preciso, desesperadamente, de um desabamento qualquer que me abrigue.

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