segunda-feira, 6 de julho de 2009

IMPORTANTE GENTE: Prêmio Literatura Fumec + MARCIANO

Então amiguinhos, eu fui selecionada num concurso literário e vou ser publicada num livrinho! A premiação vai ser dia 09/07, às 19h no Auditório Phoenix na faculdade de ciências humanas da Universidade Fumec, na rua Cobre, número 200. Quem quiser ir, pode, mas eu juro que eu não posso dar livro pra ninguém não, já que eu vou ganhar só dez (mentira, vou dar um pra Ana Paula se ela for, por que ela é muito legal e vai pegar meu prêmio pra mim), e talvez alguém seja bomzinho lá e te dê um livro. A mulher que tá organizando esse troço já quase me matou mil vezes por que tinha uma reunião às oito da manhã e eu fui às oito da noite e por que eu não vou à premiação por causa da viagem de quase um mês que eu vou fazer amanhã...

O conto que ganhou foi Marciano, que eu publiquei em outro blog, mas publico aqui agora com esse post pra quem quiser ler. Aviso: eu não reli o conto direito depois que soube que ele ia ser publicado, então deve estar cheio de tosqueiras errinhos clichês etc. Na verdade, eu odeio esse conto.
E no mais, Beijos, volto em agosto, se não der tempo de publicar enquanto eu estiver fora... OKS?


MARCIANO

- Vamos ao cinema.
- Ao cinema, Aline? Hoje é domingo...
- E daí? Eu vou ao cinema todos os domingos. – Ela se sentou na cama - É tipo uma missa pra mim.
- A última missa que eu vi foi do pai do meu irmão. Depois disso, nunca mais.
- Ele não era judeu?
- Não.
- Que triste isso.
- Triste? Eu nem me lembro direito...
- Não, não o fato da morte do pai do seu irmão, mas o fato de que a única missa de um menino judeu ser essa...
- Eu não sou judeu.
- Você é judeu, Eduardo. Ele morreu de quê?
- Acidente de moto. Eu te contei. Aquele dia na praia...
- Contou não.
- Contei sim.
- Contou não por que eu tinha ficado com medo de perguntar.
- Relutou por quê? Tão natural falar disso.
Aline olhou-o longamente.
- De onde você tira esse vocabulário?
- Vocabulário?
- Relutou?
Eduardo riu. Tinha um prazer menino nos comentários de Aline, aquela obsessão que ela tinha em analisar cada uma de suas palavras. A moça estudante de arquitetura, meio porra-louca, mania de falar muito, sensível demais, doçura implacável. De talento, conseguia absorver cada detalhe das pessoas analisando aqueles elementos que as sustentavam e dizer pelos seus hábitos e costumes suas características principais e até adivinhar como foram criadas. Eduardo era bem diferente daquilo. Tinha algo de mudez, de vergonha, de aceitação e essas eram as características nele que Aline mais odiava. O silêncio oco que se tornava de repente, quando todo o papo bom que ele tinha lhe desaparecia da boca.
- Eu guardo as palavras importantes que eu leio nos livros, que eu aprendo. Eu gosto de guardar essas coisas. Às vezes até parece que você lê todos esses livros e não aprende nada... – Eduardo falou e de repente se interrompeu, olhando bem para Aline – Você vai me odiar para sempre depois desse comentário que eu acabei de fazer, não vai?
A menina fechou a cara, tentando não rir, fingindo uma raiva completamente ensaiada, como a de uma criança a quem se nega um brinquedo ou um doce.
- Aposto que você era aquele menininho insuportável que chegava em casa depois da escola falando pra mamãe quais palavras você tinha aprendido no dia.
Aline começou a revirar os lençóis procurando a calcinha branca descombinada do sutiã preto que, quando ela vestiu, pareceu a Eduardo que ele era pequeno demais para os peitos.
- Você vai mesmo ao cinema? – Ele perguntou com desânimo.
- Não, só vou descer para fumar.
- Pára com isso.
- É rapidinho. Tô trancada com você aqui tem várias horas, a gente já fez várias vezes e eu não fumei nenhum cigarro.
- Então fuma aqui. Não quero que você saia.
- Tá brincando? Marciano, você tem todas as doenças respiratórias do mundo. Acho que quando você for estudar na faculdade alguma coisa sobre doenças respiratórias, seu professor vai querer te abrir e te usar de exemplo pra todo mundo. São dez minutos, eu já volto.
- Se você for, eu vou dormir.
- Divirta-se.
Aline pegou o vestido que tivera o cuidado de dependurar num cabide e colocou-o. Calçou os all stars vermelhos e se levantou. Vestira-se para sair na noite anterior de maneira nada especial, como se vestiria para ir ao cinema ou para a faculdade. O pouco de rímel que passara nos cílios borrara todos por baixo dos olhos e por mais que tivesse lavado o rosto, ainda havia aquela mancha escura lembrando olheiras gigantes. Sem que Eduardo percebesse, ela se esgueirou pelo corredor e entrou no quarto dos pais dele. A cama arrumada, porta-retratos, o ar mais limpo sem aquele cheiro insuportável de janela fechada e pomada para tatuagem em que o quarto do rapaz tinha. Eduardo estava sempre com aquele cheiro infantil de pomada para tatuagem. Aliás, ele já tinha aquela aparência estranhíssima de sempre ter menos do que dez anos. Talvez pelos dois dentes da frente maiores que os outros (mas certinhos devido ao uso extensivo e persistente de aparelhos), pelas mãos delicadas como uma moça rica que pratica piano, pela pele branca sem espinhas cheia de sardas discretas no rosto e completamente evidentes no peito e nas costas. A pele não era marcada só por isso, mas também pelos três motivos do cheiro esquisito: tatuagens.
Aline entrou no banheiro dos pais e encontrou o que queria: a bancada da pia cheia de produtos de beleza da melhor qualidade. As horas livres da mãe em free-shops e o dólar em baixa eram esteticamente lucrativos. Demaquilante e algodão. Limpou o caos que estava seu rosto e sem escrúpulos de ser descoberta jogou os algodões sujos naquela lixeira mesmo. Agradava-lhe deixar pela casa indícios de sua visita. Foi abrindo as gavetas e encontrou toda a sorte de maquiagem que uma mulher podia ter. Escolheu um dos batons e passou-o nos lábios. Guardou tudo onde estava, mudou a ordem de alguns perfumes. Foi ao quarto de Eduardo, pegou o isqueiro, o maço de cigarros e abriu a porta do apartamento, descendo as escadas e indo parar na calçada vazia.
I
Quando se conheceram, ela já estava na universidade há dois anos e ele acabara de ser aprovado em medicina, em sua genial segunda tentativa. Aline podia confessar que seus primeiros olhares para cima de Eduardo não foram os mais inocentes. Porém, achou aquele menino inacessível: era um ano mais novo e era bonito demais. Uma beleza tão forte que chegava a ser entediante. Ainda mais, naquela época ela namorava e era fiel. Não podia ter olhos para mais ninguém.
A mãe de Aline resolvera fazer uma festa-jantar para Betânia, uma amiga que era madrinha de Eduardo. Aline estava num dia ruim em que todas as roupas ficavam péssimas no corpo. Acabou colocando jeans, camiseta e os sapatos de bolinhas que o namorado lhe dera. Cada mulher que chegava à festa elogiava aqueles sapatos e ela dizia, enjoadinha, foi ele quem me deu, e apontava para o namorado orgulhoso. Logo, chegou Eduardo com a mãe e o pai e ao ser apresentada a ele, Aline perguntou, empunhando a taça de vinho:
- Eduardo Marciano?
- Marciano? – Ele fez uma expressão interrogativa.
- Você não entendeu, Eduardo Marciano é o personagem principal do meu livro preferido. O Encontro Marcado, já leu?
- Ah, sim! Fernando Sabino, né?
A mãe de Aline interrompeu a conversa (que parecia que teria um futuro lucrativo) perguntando se ele gostava de sushi (adorava) e o que ele queria beber (coca-cola). O resto da noite passaram conversando ela, o namorado, Eduardo e Maíra, a filha de Betânia que por sua vez era afilhada da mãe de Aline. Um caos. Descobriu-se que Eduardo adorava Legião Urbana e que era exatamente um ano e dois dias mais novo que Aline.
*
O calor na rua estava tão insuportável que ela quis logo voltar ao quarto de Eduardo. Aliviou-se ao acender um cigarro e tragar profundamente pela primeira vez. Os cabelos estavam quase secos do banho que tomara há pouco tempo. Era uma tarde sufocante de domingo, reflexo do sábado anterior. Aliás, ela tinha um motivo para ainda não ter ido embora da casa de Eduardo: sabia que tardes de domingos quentes o matavam de tesão. O descobrira numa tarde em que fora ele quem dormira na casa dela após se encontrarem por acaso tontos de cerveja e yakissoba num restaurante oriental. Acordaram na manhã seguinte às duas da tarde e antes que Aline pegasse o carro para deixá-lo em casa, resolveu tomar um banho. Lavou os cabelos, passou hidratante no corpo todo como sempre fazia depois de todos os banhos de sua vida, sem nenhuma sedutora segunda intenção. Faziam por volta dos trinta e cinco graus quando ela entrou no quarto e se deparou com o menino sentado em sua cama, folheando seu portifólio. A maneira como Eduardo a olhou foi impressionante. Chegou perto, abraçou-a, beijou-lhe a pele, o pescoço, os cabelos molhados. Logo estavam sem roupa de novo, ele declarando que o tempo quente lhe deixava maluco. Que estranho. Aquela fora de longe a melhor vez.
Algo bem parecido acontecera naquela tarde: depois de acordarem e almoçarem sanduíches e engov, Aline disse que iria para casa sozinha. Despediu-se de Eduardo e ele foi tomar banho. Quando já tinha descido os primeiros degraus da escada, pensou duas vezes e deu meia volta. Tirou a roupa no corredor, olhando o rapaz ainda meio zonzo de sono pela porta entreaberta e entrou de surpresa no banheiro. Eduardo quase gritou. Acalmou-o passando as mãos em seus cabelos e beijando-o. A noitada de ontem, pensou ao sentar-se na calçada com o cigarro entre os dedos. Terminava cada trago com um suspiro. Sábado à noite saíra puta da vida de casa, sem muita vontade de conversar e com muita vontade de encher a cara. Encontrou Eduardo no bar e aconteceu de novo. Estava há dois meses sem vê-lo e dessa vez tivera um pouco de saudades, por mais que fosse vazio-e-frio o que acontecia, e por mais que quisessem continuar mais amigos do que divisores de uma cama ou de um horroroso relacionamento estável. Se não tivesse encontrado Eduardo no bar naquele sábado, provavelmente agora estaria morta de bebedeira ou acabando de acordar de um sono sem descanso, engolindo três neosaldinas com um incontestável desejo de se matar.
II
Meio-dia de véspera de natal. A mãe de Aline quis passar na casa de Betânia para entregar presentes. Eduardo estava lá, sentado numa poltrona ao lado da árvore de natal.
- Eduardo Marciano!
Casa cheia, beijinhos, abracinhos, presentinhos. Maíra, os pais de Eduardo, outros amigos. Aline foi apresentada a Thiago, irmão de Eduardo, e sua namorada, Natália. Se pareciam muito, exceto pela barba escura e densa e pelos óculos que Thiago carregava. No mais, formato dos olhos, cabelo, altura (beiravam os um metro e noventa) eram muito semelhantes. Aline descobriu que Natália era formada em arquitetura e as duas passaram um bom tempo conversando. O que diria dela, se perguntassem? Simpática, loirinha, uma fofura de pessoa. Quando Aline e a mãe estavam de saída, trocaram-se presentes de natal. Aline recebeu uma sacola de papel de uma loja de roupas e Eduardo uma caixa de uma loja de camisas masculinas.
- Vamos aproveitar que tá todo mundo junto e vamos abrir?
Quando retiraram os presentes dos embrulhos, todos começaram a rir: Aline ganhou uma saia preta, e Eduardo uma camisa preta, mas ambos no mesmo padrão – risca de giz. Colocados lado a lado, combinavam numa expressão assustada e sem graça. Tudo terminou naquelas risadas sem graça de natal.
III
É um exame de rotina, a ginecologista disse. Aline odiava médico, mas acabou indo. Sala de espera cheia de mulheres, algumas com crianças, algumas com bebês, uma choradeira chata que impedia qualquer um de sequer saber que havia um rádio ligado baixinho ali no canto; copinhos de plástico de café e água, revistas que por mais que fossem novas, sempre se pareceriam velhas de tão gastas. O papel nas mãos de Aline guardava o nome terrivelmente assustador do exame: ultra-som intravaginal. Foi logo chama (causando uma inveja intensa das demais mulheres da sala) e quando estava no corredor, checou o nome da médica: Maria Luíza Heller. Levantou os olhos e se deparou com a mãe de Eduardo. Quase gritou: Malu?! Era uma mulher alta de cabelos muito curtos. A semelhança entre os dois era assustadora: os olhos, o nariz, a boca, as mãos, Eduardo herdara tudo. Enquanto Aline se trocava, Malu foi perguntando, que tal seu pai, sua mãe, sua irmã? Disse que estavam todos bem. Não falaram muito de família enquanto ela fazia aquele exame – com aquela coisa que ela não sabia qual era o nome entre as pernas. Na televisão, mostrou-lhe seu útero, seus ovários e disse que estava tudo em perfeito estado de saúde. Despediram-se com beijinhos no rosto e enquanto saía, pediu que a médica mandasse um abraço para o Eduardo Marciano.
IV
A festa de quinze de Maíra. Aline soube que seria um tédio. Aquela legião de amigos antigos da mãe e aquelas pessoas que não via há dez anos lhe abraçavam com seus cheiros exagerados de perfume e sorrisos que ela tinha vontade de quebrar com os punhos. Pelo menos se sentia bonita no vestido preto com um decote generoso nas costas e com os cabelos presos de forma calculadamente desorganizada. Por causa disso já levara uma bela olhada de um dos primos de Maíra: puxa como você cresceu, como está diferente! Sentada, morta de tédio num canto com um copo de qualquer bebida alcóolica na mão, ria das rodinhas de meninos e meninas de quinze anos, inseguros e com hormônios fervilhando para fora das braguilhas das calças e das pernas aparecendo nos vestidos. Logo estariam se agarrando loucamente pelos cantos ou passando mal, e disso nasceriam enxurradas de vômito, briguinhas e muita vergonha no dia seguinte.
De repente, viu Eduardo passando no salão ainda vazio. Esquecera-se completamente da existência dele. Tinha cortado o cabelo comprido e agora parecia ser bem mais velho. Aline ficou feliz por pelo menos ter algo bonito para olhar durante toda a festa. Levantou-se, foi atrás dele e depositou-lhe uma mão no ombro:
- Eduardo Marciano!
Ele arregalou os olhos ao vê-la. Cumprimentaram-se com um abraço tímido. Aline sentiu que ele estava estranhamente feliz por encontrá-la ali. Disse que estava procurando o irmão e sua namorada, mas ao invés disso, resolveram ir pegar mais uma bebida e fugir dos dos pais, amigos, afilhados e padrinhos. Ficaram sentados em um dos sofás numa varanda (que mania nova era aquela de colocar sofás em festas de quinze anos?) e conversaram muito, bebendo a maior quantidade de drinks que Curaçau Blue, vodca e abacaxi que beberiam em suas vidas. Em certo momento, se apareceram Thiago e Natália. Os quatro comentaram quão superiores se sentiam ao ver aqueles moleques dançando e Natália comentou que no seu tempo, os vestidos não eram tão curtinhos.
- Olha só, dá pra ver até o útero daquela ali!
Na hora da valsa, Aline e Eduardo assistiram fazendo seus comentários maldosos. Quão patético era a debutante dançando com uma legião de parentes e meninos sem jeito enquanto Thiago e Natália viviam um pequeno momento romântico? Aqueles vinte minutos de pé só ajudaram a bebida subir e quando perceberam, já estavam dançando no meio daquele número incontável de pessoas. Thiago e Natália desapareceram de repente e ficaram apenas os dois. Eduardo estava perto demais. Como podia? Afinal, ele queria de Aline e ela não percebera. Podia brincar com aquilo, chegava perto e se afastava. Crueldade é coisa de mulher. Tornou-se divertido fugir. Se também queria, por que não ceder de uma vez? Um beijo, então. Não era o pior de sua vida, mas com certeza nunca seria o melhor. As mãos dele na cintura dela, as mãos dela nos cabelos dele, eram macios. Resolveram voltar para a varanda, onde foi impossível conversar – se Aline parava de beijá-lo, ele se esgueirava até o pescoço, até as orelhas da menina ou para mordê-las ou para dizer coisas patéticas como você-é-linda-estou-com-a-menina-mais-gostosa-da-festa. Aline tentava afastá-lo, dizendo que ele estava bêbado. Eduardo só ria.
- Bêbado, nada! Estou em pleno gozo da minha sanidade mental.
Aline morreu de rir. Ele custou a conseguir explicar de onde vinha aquela frase, mas ela não entendeu nada. Estava tonta e feliz.
Em certo momento da festa, percebeu uma coisa estranha na cabeça de Eduardo - ele tinha alguns fios de cabelo branco. Ele riu e justificou, antes de beijá-la de novo:
- Experiência, meu bem.
Aline ficou com um pouco de medo daqueles amassos. Os pais deles estavam lá. Qualquer aproximação e Eduardo e Aline fingiam que estavam apenas conversando. Estavam tão bêbados depois de um tempo que foi difícil perceber. Sussurrando, ele insistiu que fossem para outro lugar. Motel, rua, a casa dele, dela, o carro do irmão, a escada de incêndio, qualquer lugar. Lembrou-se repentinamente de que estava usando uma calcinha horrorosa. Seria algo improvável ele reparar na calcinha dela, porém Aline negou o convite. Gostava de sua dignidade. Passaram o resto da noite comendo brigadeiros e apreciando as garotas que passavam mal. Despediram-se com um leve beijo nos lábios e alguns sorrisos tímidos.
Quando estava indo embora, abraçou Maíra (também um bocado bêbada), que não perdeu a chance de brincar:
- Ê Aline, pegou o Dudu. Como é que você chama ele mesmo? Extraterrestre?
- Marciano. Eduardo Marciano! É um personagem de um livro, sua burra.
Três semanas depois Aline começara a namorar o homem de sua vida e se encontrou com Eduardo num show da Fernanda Takai. Cumprimentou-o da forma mais fria possível.
V
O namoro não durou mais de quatro meses. Por causa disso Aline ficou mal e nas férias de Julho foi convencida pelas amigas a fazer uma viagem para a praia. Vai ser ótimo, insistiram, festa toda noite, uma semana de bebedeira sol e mar! Os primeiros seis dias foram excelentes, mas no sétimo e último, Aline cansou-se de acordar cedo todos os dias, entrar no mar, almoçar peixe, se arrumar, ir às festas na praia até cinco horas da matina. Não agüentava mais música alta, gringos, estudantes e homens caindo em cima. Não queria mais beber e mesmo com a boa companhia das amigas, queria voltar para casa. Na última noite de festa naquele lugar, precisou de um pouco de paz e resolveu sair daquele embolado de gente. Caminhou sozinha na praia em direção ao hotel onde estavam. Encontrou, no meio do caminho, um bar ou restaurante onde havia uma fogueira acesa e várias cadeiras em volta de um pequeno palco onde um homem bigodudo tocava violão e cantava alguma música da Cássia Eller. Uma das pessoas que estavam sentadas ali havia acabado de se levantar. Aline olhou e ficou surpresa:
- Eduardo Marciano?!
- Aline? O que é que você tá fazendo aqui?
- Vim com umas amigas. E você?
- Eu vim com uns amigos.
- Que coisa maluca... Marciano, eu pensei em você hoje a manhã inteira!
Era verdade. Deitada na rede no seu auge de ressaca e solidão ficou pensando no ex-namorado. Talvez fosse o tipo de coisa que nunca superaria, por maior que fosse o número de viagens à praia. Em seguida tentou relembrar seqüencialmente em cada um dos homens que tivera. Ficou parada em Eduardo durante meia hora. Ele disse que estava na mesma festa na qual Aline estava, mas enchera o saco e resolvera voltar para o hotel. Só que no meio do caminho ele viu aquele cara tocando Legião Urbana e resolveu ficar escutando.
- Tocou Eduardo e Mônica? – Aline brincou.
Eduardo respondeu que ficava empolgadíssimo quando era pequeno e tocava aquela música. Contou histórias compridas de infância e bandas dos anos oitenta. Aline disse que não entendia por que até aquele momento no Brasil não haviam feito um filme sobre o Renato Russo. Eduardo conseguiu jutificar, amassando a latinha de cerveja que tinha em mãos, que o Renato era uma pessoa muito fechada, que não se sabia muita coisa sobre ele. Seria difícil falar de alguém assim. Talvez por depoimentos das pessoas que o conheciam bem. Pela maneira que Eduardo falava, parecia que conhecera Renato Russo pessoalmente.
Sentaram-se em volta daquela fogueira e ficaram conversando. Terminou em alguns beijos, mas não mais que isso. Na verdade, a importância daquela noite era outra. Foi a primeira vez em que Aline sentiu que gostava de Eduardo. Um amor maternal ou fraternal se desenvolvia dentro dela cada vez que ele flutuava em suas palavras difíceis sobre cada uma das doenças respiratórias e alérgicas que tinha. Aline falou que aquilo era sintoma de outra coisa. Considerava asma e alergia como uma forma somatizada de carência e tristeza, como sua acumpunturista lhe dissera. Chegou a completar: por que você acha que os escritores românticos morriam de tuberculose? Você deveria fazer acumpuntura. Falaram sobre bebedeiras, o ex de Aline, cadáveres, sonhos, dicionários, sol. Assim que o homem parou de tocar, sentaram-se na areia da praia, olhos naquele oceano bonito e muito escuro que não acabava nunca – ali, aquele encontro de céu e mar tão descrito em tudo de poético no mundo era da exata mesma cor e as estrelas refletidas na calmaria a água davam a sensação de que estavam olhando para um abismo. Aliás, que seria o mar, se não o abismo?
Quando se separaram com um beijo às cinco e meia da manhã (Eduardo levou Aline até o hotel dela e seguiu sozinho até o seu), ela sentiu uma estranha sensação de felicidade, que não sentia há meses.
VI
Aline só descobriu as tatuagens de Eduardo tempos depois quando se encontraram por acaso e não tão por acaso foram para a casa dela. Aquilo explicava aquele cheiro estranho de Bepantol que ele tinha no pescoço. Os desenhos ficavam totalmente escondidos e soou completamente bizarro que um rapaz daquele nível de comportamento certinho tivesse duas tatuagens. Agora ele tinha três. Eduardo disse que era melhor ser viciado em tatuagem do que em maconha. Não conversaram muito na noite em que foram para a cama. Na verdade, quando Aline fechava os olhos, via reflexos da cor do céu de quando se encontraram na praia. Sentia como se não o conhecesse ao mesmo tempo em que o sabia decorado, como se fosse casada com ele há bodas de ouro. Sempre se encontrariam completamente ao acaso e em momentos de tédio profundo, quando já não importava mais a bebida, as diversões, os amigos.
*
Aline deixou os cigarros marcados com o batom da mãe de Eduardo na calçada e se levantou para voltar ao apartamento. Quando abriu a porta, Sacarose, a cadelinha schnauzer da família, veio correndo e latindo. Ao ver Aline passando, seguiu-a até o quarto, onde Eduardo tinha vestido uma bermuda e conversava ao telefone:
- É a Sacarose, mãe, ela tá bem, sim... Eu tô ótimo... Melhor. Tomei.
Aline não resistiu e deu um beliscão na bunda de Eduardo. Ele tentou revidar, mas Aline se desviou, seguindo até a escrivaninha onde havia apostilas e livros abertos com esquemas bizarros, fotos grotescas, quadros e textos enormes destacados com marca-texto. Estudante de medicina. Olhou para Eduardo e ele estava com um dos braços levantados, colocado sobre a cabeça, onde se podia ver a primeira tatuagem que fizera na vida: uma estrela de Davi, quando o avô morreu. A família de Eduardo era uma das únicas famílias judias que Aline conhecia na cidade. Ele não se denominava judeu, apesar do sobrenome e das eventuais comemorações. A segunda tatuagem ficava na batata da perna direita e era bem mais bizarra: um coração. Não o símbolo, mas uma imagem esquematizada do órgão, retirada de uma enciclopédia antiga. Eduardo continuou falando ao telefone enquanto Aline se movia da escrivaninha para perto dele. Ali estava a última tatuagem que ele fizera, coberta por uma camada fina de pomada na base da nuca, localizada sobre as sardas, quase entre as duas escápulas visíveis do corpo magro: o nome dele e do irmão em hebraico.
- Tá fazendo um calor desgraçado. – Ele continuou falando ao telefone. - Também tô com saudades. Te amo, mãe. Tchau.
E desligou.
- Te amo, mãe? – Aline disse.
- É, - ele respondeu sorrindo – eu amo minha mãe.
- Você não precisa continuar passando pomada depois de um mês que fez tatuagem.
- Coça.
- Você tem alergia a isso também?
Eduardo não respondeu. Apenas inclinou-se para beijá-la. Aline sabia o que ia acontecer naquele momento, já havia acontecido tantas vezes. Por que ceder de novo mesmo sabendo que aquilo não a levaria a nada? Afinal, amava Eduardo como amava as coisas que aconteciam de forma inesperada e complexa. Ele deslizou as mãos pelo corpo dela e apertou o abraço. Não se importava com o gosto de fumaça que restara na boca ou o odor distorcido dos cabelos, xampu e nicotina. Ao invés de enfiar a mão no cós da calça de Eduardo, Aline segurou o rosto do rapaz com as duas mãos e olhou-o de frente. Antes de falar, acariciou-lhe levemente os cabelos da maneira que se amansa um bicho:
- Eu fiz uma promessa por sua causa.
- Sério?
- Aquele dia na praia em que nós dois ficamos sentados na areia, olhando para o mar. Eu prometi que não ficaria com nenhum cara a não ser que ele me desse alguma coisa em troca. Eu estou cansada de me dedicar às pessoas cegamente, como uma santa e não receber nada.
- Foi por isso que você terminou com seu ex?
Aline riu.
- Você é inteligente, menino.
Sacarose estava sentada à porta do quarto. Aline lembrou-se de quando ele contou que o pai havia chegado com o filhote em casa e eles não sabiam qual nome dar. Então Thiago abriu o dicionário em uma página qualquer e escolheu a palavra: Sacarose. Uma doçura, costumavam brincar.
- Preciso ir.
Aline se esgueirou pelo quarto e pegou a bolsa.
- Agora? – Eduardo se aproximou novamente.
- Quero ir ao cinema. Você não quer ir comigo, vou sozinha.
- Putz, vai querer me tirar de casa num domingo que nem esse?
- Não tô insistindo em nada.
Foi caminhando até a porta, Sacarose seguiu-a em mudez, as patinhas batendo no piso de mármore do apartamento. Eduardo foi, abriu a porta. Aline olhou-o com um sorriso e ao invés de dar um beijo, apertou-lhe a bochecha:
- Você é a razão pela qual eu odeio todos os domingos.
E se virou para descer as escadas. Aline soube que ele só fechou a porta quando a viu desaparecer. Quando estava na rua, ouviu um assovio alto: ele olhava e acenava da janela. Aline apenas levantou uma das mãos em resposta e continuou andando poucos quarteirões até chegar ao cinema. Ele morava tão perto e nunca se propunha a ir...
Deu uma olhada nos filmes que estavam passando e resolveu ir ao banheiro. Estava apertada desde quando começou a descer as escadas da casa de Eduardo e sentiu que seria humilhante voltar. Calcinha nos joelhos, custou a fazer xixi. Quando foi se enxugar, odiou a maneira úmida que ficava por dentro depois de muito sexo. Lavou as mãos, se olhou no espelho, cabelos desarrumados, bochechas ainda rosadas, escolheu o filme. Imaginou-se anos mais tarde parada numa rua movimentada num dia de semana, fumando seu cigarro com uma lata já morna de coca-cola zero na mão. Veria Eduardo aparecendo, atravessando uma rua. Não iria falar com ele. Estava tudo bem. Comprou pipoca e foi ao cinema.

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