terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

As Crianças



O fenômeno ocorreria com todos que deixavam a escola após seu último ano, aquele que passava como uma dormência torpe nos dedos das mãos, provocando a sensação verdadeira de se estar morrendo de cansaço e de uma liberdade absoluta diante do fato de que todas as verdades que os jesuítas lambiam não tinham sustento. Antes, como crianças (ainda o eram, apesar de estarem quase todos com dezoito anos), viviam sob a obesa lei frígida, a lei bem comportada, a lei relativa, a lei errada, mil e trezentos alunos, as crianças eram sempre vistas como uma massa só. Era o enxame, não as abelhas. Sorriam para as fotos, cada rostinho numerado, uniformizado, registro formal para a posteridade e a falta de compreensão daquilo que os impedia de falar. Com o fim, entretanto, deixariam de usar aqueles uniformes injustos em favor de um armário, roupas e sapatos escolhidos como o espelho de dentro para fora. Esses sorrisos caluniosos de fotos da turma posteriormente virariam choros em frente a cabines de diretores, chacotas, agressões, abusos sexuais, narizes quebrados, suicídios. Medos, obrigações, terrorismo: decidir-se rápido, promover-se, ser bonito, aprovar-se, ser feliz, nunca sofrer, aprender com aquilo. Manter-se firme, ser macho, ser moça boa de família. Não gritar, não descer, sustentar, sorrir. Ser igual. Ser um exemplo. Não vomitar.

Enfim, os que sobrevivem se formam e são tirados do aquário. Parece que sem sair de casa, se mudam de uma cidade para outra, a primeira, uma cidade chata, impiedosa, egoísta, segregadora, a outra, uma cidade aberta, brilhante, sedutora. Um tio ou uma tia que passaram pelo mesmo processo há três décadas contam o segredo e pedem para que eles se preparem para os melhores anos de suas vidas. De repente estamos na universidade, depois bêbados numa calourada, depois estudando algo muito importante que sempre fora deixado de lado na escola numa biblioteca silenciosa, depois estamos lindos, numa boate, e finalmente em uma festa, quando acaba a cerveja. Não apenas estamos bebendo como na verdade bebemos há mais de quatro anos, sendo o álcool algo velado, marginal e aborrecidamente perigoso. Quando está tudo pronto para rolar um bacanal, alguém dita o telefone de um lugar que entrega bebidas, cachorro quente e cocaína. Era só pedir pela Vera, e eles diziam quanto vocês querem? Tinham todos sede, a casa estava vazia e era uma quinta-feira. O dono daquilo era um amigo meu, assumido gay desde os seis anos de idade, um dos rapazes mais bonitos que eu já havia visto na minha vida. Desesperara os pais por um longo tempo com suas crises histéricas, seus cílios compridos, seus desaparecimentos, sua sinceridade. Agora ele apenas coexistia feliz com eles depois da crise, e às vezes ainda conseguiam fazer coisas juntos, como o modelo excelente de uma família – compras de supermercado, passeios com o cachorro, e, de vez em quando, até uma pequena viagem para algum lugar bonito.

Eu disse a esse meu amigo, Mateus, que eu estava cansada e que precisava dormir um pouco. Minha cabeça estava estourando, uma caloura exausta de tanta coisa. Ele, sentado na beira da piscina, com um cigarro na mão e o telefone na outra disse que eu podia ficar sentir à vontade, subir e tirar uma sonequinha na cama dele. Outro rapaz gritou um eu também quero bem histérico e eu ri enquanto entrava. Era uma casa grande e às vezes tenebrosa, ampla e escura demais. Havia um par de sapatos de mulher diante do sofá da sala do andar debaixo. Subi as escadas e eu sabia que o primeiro quarto à direita era do Mateus. Abri a porta, entrei, acendi a luz. Mateus estudava artes e trabalhava com fotografia. Diante de mim eu vi o mural estupendo que eu adorava, cheio de fotos tiradas com os mais diversos tipos de câmeras analógicas que estavam posicionadas lindíssimas em cima da escrivaninha, Lomo, Olympus Trip 35, Polaroid. Um grande investimento. Fui olhando as fotos ali, prédios vistos de uma varanda, um homem nu, um rapaz e uma menina tomando chuva, cabelos compridos, cabelos curtos, nuvens, um pedaço do corcovado. E então, uma fotografia de Mateus com um rosto que eu conhecia, um rapaz alto, de cabelos claros, olhos apertados e sorriso grande.

Olhei de perto para ver se era mesmo ele. O Bernardo havia estudado comigo durante todo o ensino fundamental e médio. Ele andava só com um grupo restrito e agradável de pessoas e nós saíamos de vez em quando para fazer uns programas risonhos, como cinema em grupo para depois comer bobagem e tomar refrigerante. Uns chamavam ele e alguns outros de bicha, pelo jeito mimoso em que conversavam e outros detalhes delicados. Alguns eu sabia que tinham assumido logo após a formatura, outros arrumaram namoradas, mas na verdade aquele assunto hetero/homo me irritava muito por que era sempre muito cheio de preconceitos e zombaria num corredor de colégio. Agora ele aparecia ali, não só naquela, mas em várias fotografias que ocupavam um canto especial do mural. Bernardo por trás de um vidro chuvoso. Bernardo diante do corcovado, Bernardo sentado na praia, Bernardo de óculos escuros, Bernardo fazendo carinho num enorme cachorro. Meus pais conheciam os pais deles e eu me lembro de um dia em que disseram que o filho era afeminado. Afeminado? Afeminado não, sensível, ele disse enquanto manuseava o uísque e traía a mulher com a secretária, engravidava a ascensorista e pagava em dinheiro pelo silêncio. Vai se casar com uma moça bonita da mesma classe social que ele, ter filhos bonitos e se possível de olhos azuis, viverá numa casa rica e de paredes em tom pastel.

Peguei uma das fotografias, desci as escadas e fui direto para o Mateus. Interrompi uma gargalhada para perguntar se aquele cara era mesmo o Bernardo. “O Bernardo?”, ele pareceu impressionado por eu não saber, “é o Bê, meu namorado, sua mongol!”. Riu. “E onde ele está agora?”, perguntei, sem acreditar. Eu estava feliz com a notícia, mas além de tudo, impressionada como a mentira dos anos anteriores havia mudado completamente, uma comprovação de que eu havia vivido meus anos colegiais na mais profunda e dolorosa mentira, numa espécie de nazismo não declarado. Nenhuma chacota que jogavam para cima dele parecia agora ser a coisa poderosa que fora, a humilhação, parecia na verdade uma grande babaquice. Era como se nós não estivéssemos falando de nós mesmos. “Ele viajou para o interior, com a família dele”, Mateus tirou o celular do bolso e me mostrou o calendário com uma terça-feira marcada. “Já passou de meia noite”, ele disse com felicidade, “agora faltam cinco dias”. Um amigo bêbado dele riu, disse que a casa ia pegar fogo quando o Bê voltasse. Eu sorri.

Quatro dias depois, numa tarde de muito calor, eu estava saindo do trabalho e sendo chamada por uma colega para tomar um sorvete. Quando desci os três degraus diante do prédio do estúdio, vi passando na calçada um rapaz alto, de cabelos claros, de olhos apertados e pequenos. Estava de blusa azul marinho, short vermelho e um daqueles tênis sem cadarço que os moderninhos gostam de usar. Andava muito rápido. Tive a impressão de que ele estava vestido daquele jeito dentro de casa e, numa situação urgente, calçou os tênis e saiu para fazer o que tinha de fazer de tão importante na rua. Estava bonito e eu tive certeza que era ele, um Bernardo menos pálido e mais feliz, fora de um lugar que por anos servira para nos educar numa pedagogia muito errada, que nos fizera tanto mal.

4 comentários:

  1. Quando tiver meu filho não o porei na escola. Basta eu para ensina-lo o que realmente importa.

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  2. Gostei muito de seus desenhos, as colagens e os posts imensos.

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  3. Esse seu conto é muito verdadeiro. já senti isso tantas vezes.

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  4. Meu deus! é um plexo!
    hsuahsuahsuahsuahusha

    mas o que mais dá raiva é o tom pastel, não os possiveis olhos azuis! Ainda bem que tu botou o tom pastel. Disse tudo ali. Hipócritas ¬¬

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