quinta-feira, 21 de abril de 2011

outra carta forjada



Ana, tem sido exatamente assim. Ontem não me senti bem na galeria (muita gente, muito calor, um cheiro de tiner, e muitos quadros bonitos, parabéns parabén parabéns!) e subi as escadas com L., e tive o que acabou sendo, acidentalmente, uma dessas noites lúcidas demais que continuam no cérebro durante vários e vários dias, ou anos, ou meses: noites que anoto pra virarem ficção quem sabe. Não bebi uma gotinha de álcool sequer (apesar do galão de cinco litros de pinga que alguém tinha levado e vinho em copo de plástico e taça de champanhe, percebeu como algumas pessoas estavam bebendo em xícaras também?) mas eu estava meio inebriada pelo cheiro das árvores e morte que fica de vez em quando em casas antigas. L. contou que aquele prédio havia sido uma escola de engenharia, e em seguida, me narrou dois ou três sonhos que ele teve e eu anotei como se fossem meus, dos quais também me aproveitarei alguma hora, ele sempre tem uns sonhos bonitos com água, e outros sonhos completamente abstratos, feito música. L. estava ligeiramente mais bonito que o normal, e usava uma blusa preta que parecia ser azul-marinho, e nós conversamos sobre as cores. Ele precisa pintar uma parede de um azul extremamente específico e nós vamos estudar francês juntos aos sábados. Havia um piano desafinado ali no segundo andar, e logo após ligar para o irmão mais novo, L. experimentou umas notas (condenando com cara de limão: desafinado!) e continuou falando de uma composição da qual ele me havia dito na mesma tarde após um almoço de taioba feijão e vinagrete, tem sido assim... Balbuciei a ele duas, três palavras a respeito de paixões e ele me olhou com medo como toda vez em que eu falo a ele de um desregramento meu. Mas de repente começo a acreditar que há um entendimento mudo toda vez que digo em voz alta a alguém que eu ultrapassei uma linha involuntária, um lugar onde as pessoas têm vergonha de ir, vão e nunca dizem que vão. Vai ser bom para nós duas sair dessa cidade por um tempo: lembre-se de como é bonito o pátio daquela casa, lembre-se que no piso do primeiro andar há dois azulejos que não obedecem a ordem dos outros. Faz tantos anos que estão ali... Poxa, menina, tenho tanta coisa a te dizer a respeito das paixões, e veja só, amanhã é sexta-santa, tem uns sete anos que não ponho carne na boca e nós viajaremos juntas cercadas de mapas, lenços e violência doméstica, parece que é mais um desses sinais literários que aparecem na vida-comum, sei não. Você é mais desconfiada que eu e eu sou mais ingênua que você, sempre, ó, boa companheira de viagem. Estamos juntas.
Gran-beso,
Laurinha.

domingo, 17 de abril de 2011

carta forjada



Às vezes sinto que me afastei tanto de uma parte do mundo que simplesmente tornou-se impossível voltar.

Vou tentando entender a profundidade das coisas. Faço este movimento como se registrasse umas pequenas mentiras num mapa.

Busco
um foco que eu nunca tive,
mas sob o qual me acostumei a viver.

Talvez, na verdade, eu tenha uma grande preguiça de voltar.
Ainda assim, não consigo entender/gostar/concordar com a palavra "superação". Não gosto de mentir a respeito dessas coisas. Você mesmo me disse que o mínimo que podemos oferecer aos outros é a verdade.

E é meio estranho, até peço desculpas, eu não vou poder te dizer esta verdade porque ainda não sei o que está acontecendo.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Cascalho (VI)

Eu posso tolerar a sua dor, posso tolerar a sua carência, posso tolerar a sua injustiça, posso tolerar a sua solidão, posso tolerar a sua vontade, mas não posso agüentar de forma alguma a sua maldade. Sua vontade de me machucar. E menos ainda o resultado de sua fúria na minha pele.

Ivone não queria que eu deixasse você escapar. Que bom partido você era: um homem estrangeiro, capaz de outra língua do mundo. Ivone tirava outras de minhas obrigações na casa para que eu me ocupasse somente e unicamente de você. Eu dizia a ela que um homem jamais ocuparia tanto tempo livre que ela me dava, o que fez com que os arranhões e hematomas começassem a brotar. Poderia dizer que nem um cachorro mereceria o que você fez comigo, e creio, não posso dizer isso de um cachorro, porque todo ferimento aqui atribui-se à raça feminina, você descontava em mim a dor que descontaria numa mulher que hoje se encontra morta. E o mais estranho é que você se desculparia dez minutos antes de voltar a fazê-lo.

Então você jantou e partiu. Ivone não conversava a sua língua, mas ela pediu para você ficar. Você se desculpou e não ouviu. Ivone sentou-se, deixou o pano de prato dependurado na cadeira e olhou para mim com incredulidade.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Cascalho (V)

Que amor, que não o seu, deixaria essas marcas de mãos pesadas nos meus joelhos e pulsos, marcas de amor pesado, que não sabe outra coisa se não sê-lo bem, amor de criança, amor de mordida. Porque o mundo fez com que você se derramasse enquanto você acha que está maior que o mundo que habita: ou fora dele: mas você habita, continua andando na rua da minha casa ou numa rua a mil e seiscentos quilômetros de minha casa noutro país,
saiba, pois,
esta rua ainda é uma rua.
A sua vida não é simples. Ela não enxerga de longe os objetos raros que ela gostaria de ter (ou que ela faria questão de ter, apesar do fato eterno de não possuirmos nada verdadeiramente, nunca). Você mete as mãos e destróis, e depois tenta reatar algum pedaço e logo perde o interesse, disfarçando a culpa da quebra. Como se ter fome fosse capaz de resolver os seus problemas – ter fome como se a fome fosse um sentimento voluntário. Só posso te chamar assim,
de fome
de asco
de cascalho.

domingo, 3 de abril de 2011

Cascalho (IV)

Guardo comigo três hábitos que você me ensinou: o de fumar, que facilita minha vida nos piores momentos; o de escutar a mesma música centenas de vezes (como se ela não fosse música, como se ela fosse ar) e o de escrever as coisas num registro de sonhos e cenas, como se a verdade do mundo fosse passível de coleção. Ainda sinto, às vezes, quando me deito de costas, o cascalho do chão na minha pele, e algo de pêlo de homem em mim. Sentir os pêlos: porque os seus eram tão loiros que mal dava para vê-los pela pele abrasada de sol. Você deixava o desespero escoar em mim e depois levantava-se, envergonhado, apavorado, e me perguntava se tinha sido demais. Eu olhava para os seus joelhos feridos e sentia as minhas costas esfoladas. Eu olhava para o que estava virando o meu corpo depois de quando você chegou.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Cascalho (III)

Procurava por mulher? Sim, procurava por uma delas, a Amanda. A grávida que morrera há três dias. Daí passou a me odiar porque fui eu quem deu a notícia. Não comprou. Teve que ir ao cemitério atrás da igreja, a grama toda suja de areia e ver o nome da mulher, o jazigo da família, a lápide nova, e fazer um gesto dramático como cair com os joelhos no chão e chorar. Abrasivo. Te sirvo um café enquanto você ainda chora. Pergunta se não tem açúcar, te dou um pedaço de rapadura. Se parece com uma pedra, ou outra coisa dura sem coração algum.