segunda-feira, 19 de julho de 2010

Anotações sobre uma peça anônima para piano



Eu sou uma estrangeira. Estou em um lugar que não é uma casa, é a casa de outra família e há um cheiro doce e forte, como o de lavanda ou de lençóis limpos. Há uma escadaria e acima dela, no corredor, há um quarto que foi destinado a mim. Durmo nele há algumas noites, mas sei que em breve devo tomar uma estrada e um avião, para nunca mais (ou por um tempo vasto) dormir nesta cama. Chove, de maneira esparsa, desde quando eu cheguei, e chove um pouco agora, daquelas chuvas duvidosas, uma umidade no ar que engana a gente. As pessoas desta casa são amigos da minha família (mas há algum laço de sangue, um parentesco mínimo, já que Jean-Luc está aqui, e ele é meu primo, o que aperta mais a corda na garganta) e todos nós perdemos uma pessoa: ou alguém morreu, ou aconteceu um divórcio. Talvez, alguma criança tenha morrido, apesar de eu escutar esse barulho frenético de crianças quase tristes na sala do andar de baixo. Estou brevemente mais jovem do que eu sou agora, visto um vestido que não me pertence mais, e minhas roupas são pretas. Ainda há umas flores lá fora, no jardim, mas são poucas, por que Jean-Luc disse que houve uma espécie de geada, a encontraram no amanhecer, matou a grama, vai matar a grama toda, ele disse como se realmente se preocupasse com a grama. Eu vejo do vidro o céu cinza do lugar e as gotas que aos poucos congelam contra o vidro, e em breve não vou mais ver nada disso. Dobro, a pedido de uma tia postiça, algumas roupas de criança (dos gêmeos que picotaram as partituras do Villa-Lobos, provavelmente, mas não posso rir disso agora, é uma música realmente muito triste, esta, não vou rir disso agora, vou rir depois), ajudo a fechar uma mala, recolho xícaras de um café. Jean-Luc entra pela porta e se senta de costas para mim, enquanto eu arrumo as coisas, e ele diz que talvez não tenha dormido, confessa: ele não sabe qual é o estado de consciência que ele possui, no momento. Fala do infinito de novo, “minha vida é recapitulada, o passado à esquerda, o futuro à direita – o futuro também está sendo recapitulado”, ele fala, ele diz de pequenas estrelas frágeis, estas cenas, ele diz que as imagens estão um pouco embaçadas. O que você está falando, eu digo, uma peça somente para piano tem este espaço para o nosso diálogo. Tem, Jean-Luc responde, ainda de costas. “Este lugar é gelado”, ele diz, “nós já vamos”, eu digo. Ele se levanta, peço que ele toque de novo a música em questão, e ele diz, essa música é muito importante para mim. Eu digo: Pergunte ao seu professor quem compôs isto. Ele não sabe quem é o compositor, só sabe ler a partitura, de frente pro piano. Ele não diz nada. Ele olha pela minha janela. Nenhuma esperança. “Parece que vai começar a nevar, não?”

6 comentários:

  1. O divórcio e a morte da criança - enfim, não são sinônimos ou, ao menos, uma redundância? Só não lhe critico a sinonímia pela beleza da postagem. Ainda: acelera-me o coração pela exposição que é deixar um comentário assim, à mostra.

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  2. o apelido foi dado pelo cineasta, numa brincadeira, mas acho que isso parou de fazer sentido há tempos...

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  3. Laura, mais uma vez seu texto me prende do início ao fim. Sinto a melancolia, o cinza que habita a narrativa num tempo chuvoso... E, com a licença do mal uso do verbo, chovi feliz intimamente.

    Abraços! :)

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