quinta-feira, 20 de maio de 2010

canil



A mãe dos filhotes havia morrido atropelada, ela disse, enquanto abotoava sozinha o vestido indiano comprado numa feira hippie qualquer, edificada numa rua há muitos anos, noutro domingo de sorvete e sol. O tecido era escuro – algo entre o cinza, o roxo, o marrom; e de certa forma, apesar de comprido e reto, aparentemente sóbrio, eu podia ver as curvas dos quadris e das coxas, enquanto os peitos, de tão pequenos, não cobravam sutiã por baixo. Me disse que já passara na casa de uma tia para buscar uma mamadeira que um priminho não usava mais, leite de vaca, teta destinada agora ao nascimento dos dentes de um cão. Colocara tudo na bolsa. Descemos as escadas e o sentimento da rua era ruim, domingo, os espaços vazios. O silêncio dentro dela – no ônibus – era ainda mais absurdo. Apertava as mãos, nervosa, como um pai em sala de parto.

Quando chegamos, estavam fazendo um churrasco na casa, com cerveja e fumaça de carne queimando. Ela ignorou a festa. Seguiu uma mulher, subiu as escadas, a música estava à altura máxima da surdez dos bêbados, seus pecados, gordura, corpos suados sem camisa. A casa parecia um labirinto, com dezenas de caminhos entre corredores e portas, construída no modo aleatório no qual família que cresce. Voltou desesperada. O bichinho não era muito grande, castanho, tinha mesmo cara de filhote, indefeso e órfão, chegava a ser idiota. Ela protegia suas orelhas com uma das mãos para que não se assustasse tanto com aquela música alta, pessoas malvadas, torturando cachorrinhos, aquele era último da ninhada; um havia morrido depois da mãe, outros dois, mais graciosos, mais felizes, recentemente adotados.

O ônibus, lá fora, no frio, demorou. O vira-lata tremia muito, apoiado nas coxas dela, sobre carne que eu lambera e mordera há menos de meia hora, eu podia ver, os olhinhos chorando um medo difícil. Quando entramos no ônibus, o trocador nos julgou, mas não disse nada, ela o levava no colo como um bebê e assim que o veículo começou a se movimentar pelas ruas mortas do domingo, o filhote adormeceu.

3 comentários:

  1. bonito demais! deu pra ver a cena.

    eu eu um amigo já salvamos uma filhotinha. ela caiu no bueiro. foi mó difícil tirar ela de lá, a gente nem alcançava. tivemos que voltar em casa e pegar rodo, vassoura. acabou que ela ficou comigo (na casa dos meus pais), faz companhia pras outras duas. ela era bonitinha e indefesa e tudo mais, mas era idiota, caiu num bueiro, por isso a gente chama ela de coragem*.

    *
    http://desciclo.pedia.ws/wiki/Coragem,_o_C%C3%A3o_Covarde

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  2. Ai, Laura. Lindo esse texto. Muito mesmo.

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  3. Nossa! Laura, este texto é lindo. Forte e delicado.
    Bjo,
    Selma.

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