segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Cadeira



O que eu deixei aqui? Um pedaço de coração? Uma fotografia partida em quatro? Um papel rasgado em pedaços, marcando de vinte em vinte as páginas de um livro bonito? Aquilo estava definhando para morrer. Fora o aniversário do Ítalo, o telefone não tocou – estive fora o dia todo, ausente quando ocorreu sua conversa com ele. Parabéns, cara, diria, voz de homem é tudo igual, e a cabeça que não muda, têm felizes quinze anos pelo resto da vida. Quando ia chover, o cachorro começou a latir para os trovões. Nisso eu já estava cozinhando. Ítalo abriu o meu presente, me agradeceu com um beijo no rosto e com amor de sobrinho. Menino bom, menino grande, eles dobram de tamanho, você vai ver com os seus.

A tempestade veio abaixo e nós na sala, jantando e rindo. Anna, então (Anna se dependura nas janelas, Anna ouve conversas, Anna revira quartos, Anna aperta partes doloridas do corpo), disse que te viu outro dia, saindo do sacolão com um guarda-chuva preto quebrado, carregando sacolas de verduras. Disse que você perguntou por mim, me mandou um abraço. Contei a ela então que eu e você não nos encontramos mais, eis, trabalhando sob o mesmo teto, contra o mesmo sol vindo dos mesmos vidros. Ele é o vento de um dia, eu apareço no outro. Aquele esquema de segunda, terça de tarde, quinta de manhã, sexta de manhã e às vezes sábado meus versus suas terças pela manhã, quartas-feiras, quintas e sextas de tarde seus. Nós não nos víamos jamais. Contei dos e-mails burocráticos que trocamos e dos bilhetes nas portas e na garrafa de café (“com açúcar” ou “sem açúcar”), a companhia enferrujada.

Percebo uns rastros, quando você esteve antes de mim – a ordem dos móveis, a posição das fotografias no quadro (para a evidência, estamos juntos em algumas), um recorte no mural, recém incluído, um lápis antes na latinha, agora dentro da agenda aberta no dia de ontem. Alguns são mais íntimos. Um dedo seu no vidro que limpei, os óculos, esquecidos com as pernas dobradas sobre a mesa, uma xícara suja, a flor que murchou na água velha, você trouxe outras novas. Devo talvez escrever um recado. Moço, há tanto não tomamos uma cerveja juntos. Aparece.

A voz da nossa conversa também merece essas paredes. Coexistimos em todos os lugares mas não nos vemos, moramos a três quarteirões um do outro e não nos vemos. Percebo que na maior parte do tempo também te renuncio. Estamos os dois em silêncio, e o processo de morrer ainda contém uma respiração, mesmo que fraca e última. Quando me lembro vou até o armário, pego uma camisa suada sua, amarrotada dentro de um pulôver, e cheiro, até decorar o aspecto daquilo, e viver mais umas semanas assim.

2 comentários:

  1. Sutilezas femininas. Adoro. Gosto quando posta textos grandes porque prolonga o tempero.

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  2. Muito bonito e delicado. adoro estas delicadezas.

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