domingo, 9 de janeiro de 2011

A Terça



Hoje de manhã vesti por acidente ou por impulso a blusa que eu estava usando na noite em que Isidoro me apresentou a você – guardo, também por essa sorte equivocada de acidente, a memória estranha da roupa que eu estava usando naquela noite, a saia preta que vai bem com tudo, os sapatos de salto e a blusa preta e branca de uma estampa geométrica difícil de decifrar (são pássaros voando), uma dessas blusas que normalmente reservamos para ocasiões especiais, e não para o uso cotidiano que eu realizei hoje ao sair de casa para um dia normal. Estava com os cabelos presos, apesar de Isidoro sempre dizer que os preferia soltos, e era uma noite mais ou menos quente, mais ou menos fria, o que me fez pegar um casaco e colocá-lo na bolsa antes de sair de casa. Quando fomos apresentados, acho que eu já estava com o casaco no corpo, era tarde. Fiz que Isidoro levasse também sua jaqueta, mas o dele passou a noite toda dependurado numa cadeira de dentro do bar ao qual nos arrastamos depois do concerto. Normalmente quando as noites são douradas ou hesitantes, suspeito de algo que vai acontecer, numa espécie de marca de destino. Eu me lembro que eu estava em uma mesa tão cheia de gente, e a noite enturvara, assim, como se houvesse uma neblina no ar entre os meus olhos e o rosto das pessoas, e a luz amarelada das lâmpadas explodia em todos os cantos. Segundos antes de Isidoro encostar as mãos nos meus ombros e me dizer que eu me levantasse, eu olhava para Joan de pé na calçada, Joan, aquele rapaz catalão ou basco (eu me esqueço) que estava por aí naquela época, morando na casa de um ou de outro, e percebi de longe o tanto que o rosto dele era feminino, as bochechas, o nariz, o sorriso, as mãos, até mesmo a voz e o jeito de fumar me pareciam serem pertencentes apenas a uma mulher. Até mesmo o nome Joan é terrivelmente dúbio, conheço algumas moças que se chamam assim. Isidoro reafirma que eu nutro uma fascinação crônica e sem motivos por gente indefinida; e se tratar de uma pessoa rude ou distante, como o Joan é, eu gosto mais ainda, para poder manter a distância necessária de uma espiã. Eu olhava para Joan e então Isidoro veio, falou para eu me levantar que ele tinha que me apresentar a uma pessoa.

Você estava do lado de fora do bar, na calçada, sentado numa mesa repleta de homens. Ficamos de pé durante a meia hora em que comigo. Meia hora? Não me lembro do tempo, não me lembro da linha, não me lembro das coisas funcionais e ordenadas, que são feitas para a recordação prática das comunicações. Recordo apenas aquelas coisas que facilmente se perde o dom de notar. Lembro de Isidoro dizendo a você, essa é a minha irmã, e o cumprimento, você tinha acabado de receber uma latinha de soda do garçom e colocou num copo com gelo que podia ter alguma coisa de álcool dentro, e então, a conversa, como Isidoro se aproximou para ouvir por um tempo e depois saiu fora, eu me lembro de como ele estava, querendo se divertir, queria falar bobagens com os outros enquanto eu e você começamos a falar, sem intimidade, de algo acadêmico e cinza, e depois quando eu falei de culpa, você disse algo que fez tanto sentido para mim que sou incapaz de reescrever as suas palavras. Tanto porque não me lembro com exatidão delas. Me lembro a sensação de paz e inquietação que você me deixou naquela noite, através do seu tom de voz e das suas palavras, respectivamente. E depois tive de fugir por causa de uma carona que, se eu perdesse, me arriscaria uma madrugada na rua.

Isso tudo aconteceu faz cinco meses, mas eu só consegui falar daquela noite com alguma retidão quando falei da blusa, do rosto de Joan, das mãos do meu irmão, e ainda, não consigo falar dos seus olhos ou da sua fala, porque as coisas vão se perdendo, devagar, e eu recordo apenas das infimidades: o azulejo cor de areia que revestia o lado de fora do bar, os risos, a sua mão segurando o copo, o cabelo preso de Joan e o cigarro atrás da orelha, os rapazes sentados atrás de você, os seus sapatos, a sua altura. Quando cheguei em casa, sanei a dúvida de escrever ou não escrever a você quando me sentei na minha cama fria e fiz uma aposta comigo mesma. Se o número de grampos do meu cabelo fosse par, eu não escreveria nunca e te perderia de vista, se fosse ímpar, eu escreveria. Contei onze grampos, te enviei meia dúzia de cartas, e da única vez que te vi, você pediu perdão por não respondê-las. Disse que queria deixar acontecer, como se tivesse mais consciência da minha própria vida do que eu mesma. Talvez não tivesse nada a me falar, e eu tinha muito a falar a mim mesma, enquanto te escrevia: ninguém escreve para os outros, escreve cartas apenas a si. Então, bem distante de novo, escrevo essa nova carta sem nome num papel duro, difícil de dobrar, e que custaria caro se realmente fosse enviada pelo correio, mas você sabe, é palavra de mentira com verdade carnuda por dentro da casca.

2 comentários:

  1. Vai se fuder.
    Que carta/conto/relato lindo!

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  2. o que que é isso?! o que que é isso?!!
    não consigo parar de repetir isso mentalmente.
    não preciso nem falar do quanto eu gosto das coisas que você escreve, nem o quanto esse texto é bom por si só.
    mas isso foi muito forte. desde o final arrebatador, até a sensação que só o caio e uns poucos outros me dão. paz e inquietação: eu podia escrever mil textos, mas isso só ler, duas palavras, composição absurda, tanto sentido nisso.
    tanta coisa que eu podia ficar falando aqui.
    mas isso "ninguém escreve para os outros, escreve cartas apenas a si". uma carta que eu escrevi e publiquei logo antes de ler esse texto.

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