terça-feira, 15 de junho de 2010

literatura comparada



Havia algo de estranho em tudo, algo de ancestral, aquilo dos poemas medievais, quando os eu líricos femininos (sempre escritos por um homem, dizem) cantavam “onde está o meu amigo? Quando volta o meu amigo?” para aquele que havia partido num navio (Ulisses de Penélope) enquanto ela esperava e falava à natureza da saudade – Saudade, já havia essa palavra espinhosa? Já se havia cunhado o conteúdo doído da casa vazia sem a voz do outro? Cidade vazia sem os cabelos do outro, cidade sem colo. Antes, amigo, essa palavra, Caio F. já havia narrado essas odisséias duplas e dúbias, dois amigos pela noite, dois amigos vivendo em cidades sem colo, e então um abria a porta do táxi para o outro entrar. Quando as coisas, a noite, tudo chega ao fim, uma rodoviária, um cheiro estranho e cinza de prédio antigo e despedida, para deixar-nos nesses cantos de saudade e de espera. Meu amigo, Hermes, do outro lado de um oceano, guarda o sabor doce de uma pêra.

(para Léo e Schiavo)

sábado, 12 de junho de 2010

fácil



Cesária não me deixa ficar em casa de dia, a não ser que eu ajude; e quando me canso, vou para o jardim ficar com os gatos entre as plantas cercadas de coisas daninhas. Uso um vestido rasgado, e às vezes um avental para não terminar de estragar a roupa velha.

À noite, me maquio olhando para um espelho qubrado e lá vou eu, moer os ossos dos dedos dos pés na rua. Quando está muito frio, te procuro em casa. Se você está, me dá de beber o vinho, que amolece minha carne, tornando-a mais macia aos seus dentes, mais fácil ao seu paladar.

terça-feira, 1 de junho de 2010

faltas



14 - É você, tenho certeza que é você, eu pensei, ao atravessar a rua, quando eu vi aquele homem se sentando no banco da praça como se esperasse alguém. E então entrei no ônibus que havia chegado. E agora faziam três semanas quase exatas que nos tínhamos cruzado na rua e conversado as onze da manhã por não mais que cinco minutos. Me lembrei então de como você gostava tanto do trabalho de Vera e eu disse que eu cuidara dela durante alguns meses, quando ela ficara doente. Pessoalmente, eu disse, acho que foi melhor do que fazer qualquer matéria com ela. Estudar qualquer coisa com ela, por que eu tinha acesso à biblioteca, e nós conversávamos muito – ela falava muito. Não falei nada dos vidros quebrados, não falei nada dos gritos mimados de Vera nem da casa afundando. Vera era imortal, quase acrescentei, meio assustada pelas circunstâncias, nada a derrubava do jeito que derrubavam as mocinhas mais jovens, eu, Katylenne, todas as outras.

15 – Nota de aula: A linguagem é a ausência da coisa: linguagem é sempre perda. O que foi perdido está perdido. O escritor porém pode inventar sobre aquilo, mas nunca poderá haver de volta o objeto perdido. O escritor, o indivíduo, o sujeito, ele é construído de lembranças e memória. Todos impalpáveis. Ele precisa voltar a isso. Ele se consola.

16 - Vejo sua camisa dependurada no cabide. Cheiro até o fundo um resto de suor.