quinta-feira, 6 de maio de 2010



14 - Presenciar a dor que enfurecia as grávidas e fazia seus bebês nascerem, enxugar meio litro de sangue e sorrir ao ouvir o primeiro choro, que inferno, não quero ter filhos. Sentir o perfume que as outras moças usam para dormir, imaginando que estão perto de seus bons partidos. Limpar vômitos e latrinas, dar banhos de esponja, detectar mortos, fazer barbas, cortar unhas, colocar o uniforme, achar uma veia no braço de um homem cheio de queimaduras.

16 – Você não sai de casa? Das vezes que te vi sozinha na rua (longe dos olhos crus da sua família, longe da mão do meu noivo), tão poucas, você perguntou em todas se eu andava escrevendo. Sim, eu respondia, com os braços cheios de livros. Se seu irmão não fosse tão chato, eu estudaria isso, afirmei, mas vou me casar, estou passada para desejos. Que nada, ele disse, você sabe que não é assim, isso vai te perseguir pelo resto da sua vida.

17 – Por que ninguém faz nada com esse papel de parede mofado? Com essas prateleiras vazias? Aqui dentro as coisas brotam. Na minha casa tem um tapete rasgado, um buraco na parede, um armário sem porta, coisas que não funcionam direito e alergias a isso. Por que ninguém faz nada com essa moça que não toma banho?

18 – Clarissa me diz: menina, não faça isso. Ela é a única que sabe sobre você, meu amor bruto. Clarissa diz que já amou o próprio cunhado, como eu, mas que depois aquilo foi dissipando. Mas nunca deixou de amá-lo, apesar de ter preferido dar todo o amor ao marido. Ela tem poucos espelhos em casa. Muitas pérolas na caixa de jóias (quando eu fui me casar, eu carreguei no decote do vestido branco um colar de Clarissa, e nas orelhas, brincos que ela disse ter trago da Grécia), seus vestidos não tem rasgos nem defeitos, se ajustam ao seu ainda belo corpo, carregado de velhice. Na casa de Clarissa tem chá. Na casa de Clarissa tem café com açúcar.

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