sábado, 11 de setembro de 2010
Relicário
Ainda conservo aqui a foto 3x4 que tirei naquele dia em que estava com a blusa do uniforme do clube manchada de mercúrio-cromo, eu tinha dezessete anos e não sorria. Nesta imagem, meu rosto parece cansado, minha pele nunca esteve tão morena e meu cabelo crescera além da minha vontade – deixei assim por uma vez, ao desejo de mamãe, que não gostava que eu o cortasse tão curto – atingindo a linha dos ombros, um recorde que só fui retomar quando me formei na faculdade e namorei Antônio, amante de cabelos longos, muitos anos depois. Toda a superfície escura e homogênea do cabelo que é hoje não se mostra assim nesta fotografia: as pontas, queimadas de sol e cloro, denunciavam meu ofício da época, os ombros largos, os pés grandes, corpo exausto. Hoje, me parece um absurdo que a natação me tenha consumido tanto na juventude. Creio que também nestes dias, mamãe já começara a alisar o cabelo de Anya, minha irmã mais nova, que nascera com cachos macios e indesejados na cabeça, e com um estrabismo operado mais de três vezes, um estrabismo que nunca conseguiram corrigir perfeitamente, esquecido quando Anya se entregou por completo ao violoncelo e quando pais estavam à beira de um divórcio definitivo que levaria meus irmãos para longe de mim.
O mercúrio vermelho-escuro sobre a superfície antiga da blusa era uma imagem-marco da lembrança do dia em que aconteceu o primeiro de três acidentes que me afastaram da água, sendo que o último deles me quebraria um fêmur e um braço, me colocaria pinos em um joelho e em um pulso, além de me dar as cicatrizes, e esse dom emblemático de sentir dor quando o tempo está para chover, resquício dos esfolados, o meu último contato com a água, irreversível como a própria chuva que eu prevejo. Mas não, não era dessa vez mas na última em que houve o acidente de carro, e a mancha não tinha nada a ver com tantas injúrias, fora apenas um pequeno resquício de uma terça-feira violenta no banheiro do clube:
Era o fim de tarde, e começara a chover, quando acabou o treino e deixamos a piscina. Eu não corri da chuva, com medo de cair (e depois de um tempo, descobri que a chuva, além de um aborrecimento eterno e uma beleza peculiar, é uma espécie de presságio, nem mau nem bom, mas a chuva é um acontecimento sempre quer dizer algo). Havia certo asco em entrar no vestiário e ver nuas as colegas da equipe de natação, encarar o cheiro de água sanitária, perfume e desinfetante, ao se despir e entrar num banho que prometera um dia ser quente, no botão “inverno”do chuveiro elétrico mentiroso. Hoje, estas moças estão todas desaparecidas, nenhuma notícia de nenhuma moça, nenhum rosto na televisão em competições nacionais e internacionais, nenhuma das moças brasileiras nestes eventos é da mesma cidade ou freqüentou o mesmo clube que eu, apesar de haver algumas promessas, levadas por olheiros para Pequim, Paris, Melbourne, Quito, Tóquio, e esquecidas para sempre pelo quotidiano exaustivo de treinamentos. Bárbara, a única com a qual eu conversava de verdade (eu era conhecida por uma timidez equívoca enquanto eu deveria ser conhecida por meu amor ao silêncio, e nem mesmo a Bárbara fora capaz de compreender isso) me falava sobre sapatos, provavelmente, ou matemática, ou dedos enrugados e unhas quebradas, ou depilação e marcas de biquíni, ou almoço, e ela falava, quando uma das meninas, que provavelmente se chamava Nádia ou Natália empurrou outra, que se chamava Isabela ou Isadora, e as duas começaram a brigar. Uma briga física: empurrões, mordidas, cabelos, me lembro bem desta imagem, uma delas, a que atacava, estava de calcinha e sutiã, enquanto a outra, a que era atacada, estava completamente nua. “Puta”, “piranha”, “vaca”, ouvia-se por todo o quarteirão que cercava o clube. Então, enquanto as velhinhas que caminhavam na água antes da novela começar, as grávidas que vigiavam os outros filhos brincando na piscina e umas meninas pequenas observavam com horror a cena, aquela senhora que cuidava dos vestiários tentou separar a briga de gritos, grunhidos e pontapés, e eu não consegui me esquivar quando Nádia ou Natália caiu em cima de mim. Ainda gritava, mas foi segurada pelas mãos escorregadias das outras nove meninas que pertenciam à equipe.
Eu não havia me machucado dessa vez (não podendo considerar este episódio como um dos meus acidentes), mas acabei tendo o meu chinelo arrebentado pela ira daquelas duas meninas. Depois de um sermão da senhora do vestiário para cima dos ouvidos de todos (“não é assim que a gente resolve as coisas” ainda ressoa dentro de mim, naquela voz cinza de fumante da mulher), terminei de me vestir e fui arrastando o meu chinelo arrebentado, caminhando ao lado de Bárbara para o lado de fora do vestiário. A chuva havia parado, e Bárbara finalmente começara a falar, em voz baixa, o motivo daquilo. “Foi por causa de um dos meninos”, disse ela, “ele é da equipe, você deve conhecer – o Aquiles”. Sim, eu disse, eu conheço um Aquiles na equipe, mas nunca troquei uma palavra com ele, eu não trocava uma palavra com ninguém. Algo havia acontecido – Aquiles estava com uma das meninas, e elas haviam brigado por que, numa festa, ele beijara a outra. Na época, não sei se fiquei chocada ou apenas sacudi a cabeça, marcando a idiotice da situação, mas o que mais quis foi ver a cara deste Aquiles, que interesse grande era o que se construíra pelo rapaz. Eu já me interessara por alguns, sim, e já beijara outros, colecionando algumas experiências –todas frustrantes – das quais eu podia falar, fingindo uma futilidade exigida naquele meio. Mas nada me interessava, naquele momento, além de ver o rosto de Aquiles. “Vou te mostrar quem é”, Bárbara disse, enquanto eu arrastava o meu chinelo através do espaço entre as árvores do clube. Espere, eu disse, quando estávamos para entrar no corredor de troféus da secretaria, e eu tirei o meu chinelo, decidindo seguir descalço dali pra frente. Depois de alguns passos seguros em cima de um chão úmido de folhas que caíram depois da chuva, eu pisei em cima de alguma coisa que eu não havia tido cuidado em olhar, uma coisa de um conteúdo primeiramente mole e depois muito quente. Demorei a perceber o quanto aquilo doía, a dor me fez esquecer que eu queria o rosto de Aquiles, e por essa cegueira da dor, compreendi só depois de alguns segundos demasiado longos que aquilo era uma dessas lagartas de fogo que, como aprendíamos na escola, possuía este veneno escaldante, e que um dia se tornaria uma borboleta.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Aew laurinha....Saudade doc sua doida. Tempão que a gente não se encontra nem se fala né? Tem contato com alguém daquele presídio ainda? (Lê-se Santo Tomás) hahaha
ResponderExcluirVamo ver c a gente marcar de encontrar! Eu, oc, Henrique e João!!
beijosss e depois dê uma espiada no meu blog tmbem
beijaaaao
Sem palavras para comentar
ResponderExcluirTexto bom é o que manda o coração saltar da boca para ser lido em voz alta. O teu é destes.
Você precisa imprimir livros! Seus textos merecem serem lidos na cama antes de dormir, em pé no ponto esperando o ônibus, na fila do banco....
ResponderExcluirÊta trem bom!
ResponderExcluirAh Florita, vamos ver se consigo "imprimir livros",né? Obrigada! to com mega-saudade de você e da praga do William que, ao que me parece, falhou ao tentar imitar meu sotaque aí...
ResponderExcluirai, desculpa, to sem tempo de ler tudo.
ResponderExcluirassim que der termino.
só pra te lembrar, o Diário de um Dinossauro ainda existe. escreva por lá.
beijocas!