domingo, 27 de dezembro de 2009

últimos anos

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Até onde vai no fundo a terra do quintal?, pergunta o neto com uma das mãos ainda segurando a corda há tanto tempo firme do balaço. Explica o avô que sob a terra tem pedra e sob a pedra tem lava, que é pedra líquida e quente. Geografia, você vai aprender na escola. No futuro, o neto se lembrará da terra, da pedra, da lava, além de saber de outras coisas de carbono e cadarço amarrado; sem se lembrar especificamente daquela fala subterrânea do avô morto. Derreter uns restos de pesadelos que sobraram como pedra quente por dentro o dia todo, esvaziar os armários dos vestidos tristes que tinha a mãe. Lembrar-se-ia apenas da imagem idosa, parada perto da árvore, e de seu balanço hoje rompido, caminhando com cuidado para não tropeçar nas raízes que sobressaíam o solo e as folhas, recuando na direção do profundo.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Marisa



(Para Ciro Trevisan)

Ela abandonou a leitura do meu livro preferido dando justificativas ralas, arrastou-o em minha direção, parecendo ser gentil, mas não foi intencional. Meio resguardada, colocou mais um grampo no cabelo e não olhou para mim, apoiando a mão no queixo e o cotovelo puído na mesa – rua sem trânsito, paraíso das três da tarde, ela disfarçando a blusa rendada do pijama com sutiã colorido por baixo (eu já decorara todas as dezoito cores e estampas), casaquinho de lã embolotada por cima. Seria mais fácil se ela gritasse, como sempre, e jogasse coisas em mim, recorrendo à pilha de revistas femininas compradas por nós duas compulsivamente, capas ideais, sapatos ideais, sexo ideal, cor pra cabelo ideal para a sua cor de pele e tipo de rosto, promessa política solene de satisfação, sucesso profissional, receita de brownie. Seria mais fácil ver Marisa esgoelando morrendo como-sempre, jogando coisas em mim como lhe ensinara o cinema – mas estava caladinha, caladinha qual criança entediada a ponto de chorar, expelindo quantidades paquidérmicas de meleca verde pelas narinas. Olhei para cima: era o mesmo restaurante com teto de vidro no qual nós duas nos sentáramos há quatro ou cinco meses arregaçados fodidos e listamos nos guardanapos os nomes de todas as pessoas que gostaríamos de atirar de um prédio de vinte andares. Marisa, que nome estranho esse seu, mistura de maré, maresia, brisa, inadequado para uma paulistinha sufocada que jamais tirava a maquiagem para dormir (na manhã seguinte reclamava de como a pele estava uma merda, olha só, quase vinte e três anos e essa espinha aqui, tô um panda, olha o rímel que bosta) e embrulhava maçãs verdes no papel filme e as colocava dentro da bolsa de pano colorido para aquele intervalo insuportável entre um corriqueiro ou outro, enquanto espera o próximo metrô e toma sem parar um gole de água podre da garrafinha remelenta há meses levada por aí durante todas suas cruzadas pessoais. Cólica, dor de cabeça, remorso. De repente a vida seria um flash do tempo passado com Marisa. Acendeu o cigarro (“muletas para os gestos”, repetiria, repetiria), pediu desculpas pela manchinha ali nas primeiras páginas, era café, tossiu, um pequeno acidente, espero que você não note, não vai notar, vai?
Nosso primeiro encontro foi Interior/dia, Marisa classificou, disse que poderia fazer um curta dele quando não tivesse criatividade para inventar nada e colocar o meu nome em branco numa tela escura, assim, no cantinho, logo que a história acabasse. Interior/dia. Eu a conheci no metrô, o interior, enquanto dia era de chuva, a vi pela primeira vez quando um trem passou e ela desceu, atrás de mim, enquanto eu esperava. Vi aquela coisa passando, moça baixinha e branquela, olhos pequenos e sérios, cara de foto 3x4, o mau humor sublime, latente, divino, cabelo curto mendigo indie sem pentear sem lavar, tinha uma cor estranha que depois ela me explicou ser conseqüência uma sucessão insana de tintas pretas, verdes, laranjas, ruivas, amarelas; água oxigenada o bastante para descolorir os pêlos das coxas das mulheres do prédio inteiro onde eu morava. Marisa usava sapatos de plástico esquisitos, camiseta preta deixando alça de sutiã liberta, saia de pano até o joelho, terminando de desbotar, e dava mordidas desinteressadas na superfície verde desamadurecida de uma maçã, mastigava, cheia de tédio, olhava no relógio o horário previsto, ia e voltava por poucos metros do corredor, perto de mim. Perdão, eu repetirei, tomada após tomada, até que fique perfeito como se fosse real. Quando o trem chegou, trapaceei, entrei no mesmo vagão que ela, que sentou sem me notar num cantinho no sentido contrário da partida. Tirou da bolsa, previsivelmente, um livro. Me aproximei. Também previsível, como ela, tentei fazer um sorriso bonito e perguntei o que ela estava lendo. Ela levantou a cabeça. Não riu. Não é legal – disse – eu estudo cinema. Parecia legal – explicou – mas toda teoria é uma chateação. Teoria dá câncer. O resultado fica até bonitinho, aí vai, mas é um saco fazer cinema. Marisa era assim, a gente dava atenção, abria cortina, ela falava sem parar. Naquela tarde mesmo fomos parar num boteco e ela me derrotou duas vezes na sinuca, enquanto destrinchou toda sua vida para dentro de meus ouvidos comendo um hambúrguer no tal restaurante de teto de vidro. Toda vida para dentro dos ouvidos, e dos ouvidos, sem digestão, direto para o meu peito e meu estômago, que passaram a doer eternamente todas as vezes que eu pensava nela. Ao fim daquele dia, que virou tarde, e logo virou noite, levei-a para o meu apartamento, como se eu fosse um grande homem comedor, e de fato, eu era mais mocinha indefesa do que ela. Fui aprendendo.
Marisa era a repetição avassaladora de clichês – óculos escuros de noite e o drama da unha pintada de vermelho; ela pintava hoje e três dias depois, já descascando, roída e impaciente e comprava por um e noventa e nove outro tom de vermelho muito semelhante ao anterior e repintava as unhas enquanto ouvia música pelos fones no volume máximo e cantava baixinho junto, desafinada e irritante. Marisa infestou meu apartamento com os vidrinhos daqueles esmaltes vermelhos, eles aguardam uma dispensa endurecidos na pia do meu banheiro. A vida dela era uma baldeação contínua e o mundo seria sempre um lugar pior todas as vezes que ela perdesse na sinuca.
Marisa foi e, exaustivamente previsível falou que não dava mais. Me deixou com uma nota de cinco e o resto do maço de cigarros – dois últimos, úmidos, que fumei chorando. Duas semanas depois, dentro do metrô, eu procurava minha carteira e encontrei por acidente a maçã verde enrolada em papel filme numa das bolsas que eu lhe havia emprestado e ela devolvera pela separação. E só. Depois daquela tarde passei a apenas procurar desesperadamente por Marisa nas mulheres e nos homens, não importava sexo ou idade, ou as intenções, eu tinha que encontrar Marisa em alguém. Hoje em dia ainda freqüento com assiduidade festivais de cinema, querendo ver meu nome em branco no canto da tela preta, assim que a história acaba e se iniciam os créditos, num filme sobre lésbicas onde há um primeiro encontro do metrô. Ela vai ver. Vou pôr nos postes. No verso dos maços de cigarros. Vou fazer armadilha de rato com maçã verde dentro. Vou dar recompensa.
Eu preciso, desesperadamente, de um desabamento qualquer que me abrigue.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

drástico

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O seu tio se matou num desses dias densos que nublam a cabeça do mundo. Pela manhã, caiu uma chuva fina, e essa chuva continuou caindo naquela intensidade egoísta e melada, que arrepia os cabelos das mocinhas e faz com que nós precisemos do uso intenso e recluso de casacos, sapatos fechados e guarda-chuva. Esse frio malvado de novembro que faz esquecer quão perto o verão está e joga na nossa cara quão cansados estamos. Depois das cinco da tarde, a chuva engrossou muito, transformando-se naquela ruína de destelhar casas e arrancar membros de árvores. Entre essas duas chuvas, houve um intervalo de meia hora em que tudo cessou, e um pedacinho do sol ameaçou aparecer no céu esbranquiçado. Exatamente nesta pausa, o seu tio preferido levou o revólver do seu avô até a parte da frente da Igreja da Boa Viagem e atirou no céu da boca. A chuva recomeçou logo depois do tiro, quando as pessoas enxergaram a morte e providenciaram logo sua ocultação. A chuva caiu forte sobre o tecido que haviam providenciado para cobrir o cadáver, e a chuva escorreu o sangue e a massa encefálica que atingiram a parte de fora da igreja. Encontraram um telefone dentro da carteira dele e ligaram – era a casa da sua avó, aquela que gostava de andar sem roupa no apartamento em São Paulo, que te levava de manhã pela mão através da cidade nas suas férias de janeiro e comprava churrasquinho grego e aquele jornal tosco, sensacionalista, encharcado de sangue, o Notícias Populares, você ainda tem saudade dela quando vê por acaso numa banca de revista. Do enterro, você não se lembra muito, mas recorda que estava chovendo e que duas tias vestidas de cores escuras guiaram uma de cada lado sua avó, de vestido vermelho sob uma sombrinha verde através do cemitério. Neste dia, no meio daquela tempestade que atrapalhou a noite da sua família, quando você já tinha três mil setecentos e trinta e sete dias de vida, exatamente neste dia, eu nasci.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Underwood 298 + I Prêmio Araucária de Literatura

(Ontem cheguei em casa meio bêbada de cervejas Malettianas e fui olhar meu e-mail, e, tcharaaam, esse conto ficou em segundo lugar na categoria Conto do I Prêmio Araucária! A mulherada arrasou dessa vez. Não gosto de postar textos muito longos nesse blog, mas vai esse aqui, por que quando reconhecem o filho da gente, a gente fica muito muito muito feliz.)

UNDERWOOD 298
(para William Bernal Lima)


Olha da janela do quarto, vê, pensa, peteleco na guimba de cigarro arremessa pra cair lá embaixo, fica presa naquele platô entre o primeiro andar, o térreo e a calçada. Janelinhas acesas por aí, tem uma televisão ligada nas que piscam, azul, verde, vermelho, quando não faz esse calorão, tem cortina fechada. O que assistem - o jornal com a contagem dos mortos, uma novelinha com as vidas que eles acham que ainda vão ter, desejo açucarado. Acende um novo último cigarro do maço. Dedo amarelo. A mãe advertia, o tabaco, a bebida, a tristeza – além de outras coisas que ela não vai mencionar, demais para um corpo como o de qualquer garoto de, por aí, dezoitodezenovevinte anos, talvez um pouco mais. Olho claro, sarda no rosto de uns dias ensolarados que ardem até hoje quando lembra, o caráter sempre sucumbe.
Ele olha, vê e pensa. No andar de baixo, na varanda, jovens homens jogam cartas, tomam cerveja e comem sushi de supermercado. Devem ter no máximo trinta anos. Se tivessem mais que isso não haveria sushi sobre a mesa mas sim alguma aposta. Os jovens não apostam nada de verdade. Com toda essa coisa da camada de ozônio não há como apostar, tu viu? Aquele carinha morreu de ataque cardíaco, cocaína, carro passou por cima. Manual de instruções. Porra, pior que hoje deve ser sexta, com todos esses carros, esse barulho, essas luzes acendendo. Deveria sair, vestiu um jeans, foi levando um agasalho, menos para o corpo e mais para o coração, a mãe ia dizer pra levar um agasalho, era pra não ouvir nada a obediência prévia. Já comeu? Tá levando dinheiro? Volta tarde não, heim? Deixou-a para trás com novelas e casos e revistas e vassouras. Desce os catorze lances pela escada, falta de paciência pra elevador falido, não dá pra ficar esperando, a vida é curta hoje em dia, dura pouco mais de cem anos. Vai ficar sem seu pedaço se esperar de bunda mole a vizinha do quinto despedir do namorado, aquele bosta, segurando a porta emperrando todo mundo.
Dá tchau pro porteiro, ia fazer uma comentário sobre o Corinthians, mas não teve jogo ontem nem anteontem, sei lá, não valia a pena. Prédio falido. Vão demitir o cara essa semana, olha que merda. Ele vai andando, sabe que os amigos vão estar sempre no pior bar da cidade, vai encher tanto depois das nove. Talvez a Bia esteja lá. Todo aquele cabelo loiro e comprido e cacheado, aqueles olhos pretos firmes onde ele se perdia noite após noite, após orgasmo, após café e filme e bar e cigarro. Sim, sempre retornamos ao início, o cigarro. Entra num lugar qualquer, não sabe se é boteco lanchonete padaria farmácia pub irlandês, compra um maço, tira o plástico. Põe um atrás da orelha, guarda o resto no bolso da calça, vai andando, vai andando. Bia, a Bia, Beatriz tinha aquela tatuagem inacabada nas costas – tava trabalhando numa locadora pra juntar as trezentas pilas pra terminar aquele sofrimento. Uma amiga deles que tinha feito o desenho. Eram asas, enormes, partindo das escápulas até aqueles dois furinhos lindos acima da bunda. Que bunda linda, branquinha nuvem de abril, meter a cara ali, dormir ali. Beatriz era toda branca e lisa e linda. Beatriz, que um dia fora sua e agora só restava uma jarra vazia cheinha de rancor. Olha como agora as lembranças boas amargavam com a passagem do tempo. Não sabia se de saudade ou de raiva mesmo, de quando Beatriz se foi e cuspiu aquelas palavras horríveis na cara dele. Eu nunca te amei, nunca senti tesão por você, nunca isso, nunca aquilo. Ele fora o primeiro homem da vida dela, primeiríssimo; mas jamais único. Imbecil.
Desceu uma rua e depois desceu outra. Queria saber que horas eram, mas não havia relógio algum e ele não queria perguntar para as pessoas que responderiam de má vontade, péssima fé, amargas feito aquele gosto na boca dele de quem não come nada descente desde o almoço da terça-feira passada. Ia a caminho quando topou com um amigo. Numa sacola de supermercado, ele estava levando doze cervejas embaladinhas, enfileiradinhas, obedientes. Cumprimento. Disse que tava indo na casa de um outro lá que ele nem se lembrava de conhecer.
“Vai uma latinha? Tá quente, mas...”
Sacola cinza reforçada.
“Não, valeu, velho. O que vocês vão fazer?”
“Ah. O mesmo de sempre. Reuniãozinha com os amigos, ver uns filmes. Beber.”
Tá foda, encontrar amigos na rua, eles sempre se lembram do que eu esqueci, depois de semana passada à noite. Tá foda.
Chegando ao famoso bar, sentou-se sozinho. Ninguém conhecido. É. Talvez não fosse sexta. Domingo, no máximo, depressão – o caminhão de lixo não passou. Pediu uma cerveja.
As pessoas passavam. Gente é feita pra passar, pra ir e vir da sua vida por que no fim, no fim de tudo, você vai morrer e ficar sozinho e ir para algum lugar que ninguém sabe onde é. Um lugar que ninguém sabe se existe. E eles crêem que existe, assistindo jornal, vendo novela, enterrando. Ele preferia não crer em nada para não se machucar depois com a descoberta duradoura do vazio. As garotas olhavam para ele, mas ele preferia não olhar. Enjôo. Ia acabar como Beatriz acabou e como todas as outras acabaram. Um beijo molhado e bêbado. Dois corpos. E depois cobranças semanais e brigas e fins sem justificativa. Roupa de corpo. O mundo era cheio de fim, mas também era cheio de recomeço. Ficar ali, tapando o poço pelo fundo, saber que mais que aquilo ele não poderia se afundar.
Aos poucos, enche a cara e tudo vai se tornando mutável e belo. Cerveja sozinho entrecortada de pinga embebeda mais. Sem pedir permissão, se senta junto a ele um homem que lhe conta a história de sua vida. Olham-se nos olhos, é um senhor, tem uns cinqüenta anos – ou mais. A noite escurece. Ele ri, sem saber do que está rindo. O homem coloca a mão em sua coxa e o assusta. Sai que eu não sou desses! O outro oferece dinheiro e ele não aceita. O homem bate na mesa e grita, mas ele não pode ouvir. Ele não consegue entender o que diz. Esvazia a carteira para a conta e sai correndo, dignidade de michê. O homem fica. Mas quanto a ele, onde está? Perdido. Perder-se podia ser bom, encontrar-se era melhor naquele passo da noite, mas era muito raro. Andou e andou e andou. Não havia dinheiro para mais cigarros, maço inteiro em poucas horas, porra. Ele sentia seu corpo ficando podre como fruta há dias na cozinha sem sinal de alguém pra devorar. Espere mais um pouco. Mais um pouco. Chegou em casa quando quase amanhecia, chorou por quinze minutos e adormeceu até meio-dia.



Quando sonhava e se sonhava era com Beatriz, o sorriso de Beatriz, a bunda de Beatriz, as marcas do corpo dela. As covinhas, as cicatrizes, o cheiro. Pecado mortal ter aquele doce, feito baunilha ou dama da noite ou jasmim, flor, desses cheiros fortíssimos que te deixam enjoado e feliz, veio da casa de alguma avó na infância, num passeio numa praça a noite, passado. Ser feliz é perigoso, você se acostuma.
Ele se levantou e a mãe brigou por que ele estava sem camisa naquele frio e ele poderia se gripar. Chovera das três da manhã até aquela hora da tarde. Que frio era aquele, de repente assim, sem ser inverno nem nada? Pois é, acho que o mundo ta acabando mesmo, ozônio, noticiário, novela. Ele bebe vinte e dois copos de água e come pão seco. O que foi, menino, ta fazendo promessa? Come direito. Sem vontade, sem fome. Era a gastrite, que o comia por dentro, acidez alternada com a amargura dos dias sem se alimentar com nada além de um litro e meio de café.
Volta ao quarto e procura os cigarros que ele não comprou ontem. Comprou sim, eu tinha certeza. O que aconteceu? Foi se lembrando aos poucos. Otário, estapeia o próprio rosto. Não tem mais dinheiro na carteira nem mais cigarros para fumar. O que fazer agora? A mãe já esvaziou o cinzeiro e o quarto está limpo. Sua mente está cheia de escuro e asco. Quer ficar sozinho. Fecha a porta, lê um livro excelente, dá duas voltas na sala. Inquieto, não sabe o que fazer. Da janela vê o resto da festa dos homens de ontem. Que dia mais triste – é segunda, terça-feira? Todos estão descansando trabalhando comendo existindo e meu cérebro não pára de pensar de pensar de pensar de pensar de.



Visitar o avô no hospital. Todos sabem que ele já está partindo, mas mesmo assim insistem em recomendar dizer que tá melhorando se despedir. Por não querer dizer adeus, compra as margaridas mais bonitas que se pode encontrar num dia cinza úmido bolorento antigo daqueles. Vai caminhando, os tênis machucam. A mãe lhe oferece um novo par, mas ele não quer, ele não aceita. Vai usar aqueles sapatos velhos até nunca mais. Barra de calça desmanchando, puído, descosturado, boneca de pano com o recheio saindo, ninguém entendia.
O hospital era um lugar infértil e ele gostava de lá por isso. Ali, não havia idéias, namoradas ou cigarros, jornal, novela, ozônio, havia apenas o silêncio, branco e profundo, que ele tanto desejava. Andou pelos corredores com as margaridas nas mãos. Estava ansioso para ver o avô, descendência italiana, perguntar se melhorara. Sabia que a resposta ia ser para sempre sim, mesmo com a piora das dores e com a maior dificuldade para se respirar. Otimista, bateu e abriu a porta do apartamento e se deparou com o vazio. Uma jovem enfermeira retirava os lençóis usados.
Pois não? Ela perguntou, doce. Ele falou que precisava do avô. A moça deu um sorriso apertado e falou gentilmente que o homem que habitava aquele quarto acabara de falecer. Perguntou se ele era da família, estavam todos por lá. Ele agradeceu e saiu segurando as lágrimas e os dentes. Tapar o fundo de lama do poço, não havia mais nada a se sentir. Mordia a língua e se arranhava por dentro felino para não gritar.
Passou pelas mesmas ruas e seus pés doeram mais ainda. Ele apertou o buquê. Como as flores podiam sorrir numa situação daquelas? Margaridas: Miolos amarelos e pétalas brancas. Lembravam-lhe o cabelo e a pele de Beatriz. A aflição crescia e ele não podia chorar. Está proibido de sentir. Subiu para o quarto, fechou-se e se empenhou em despetalar as flores, uma a uma, formando um belo montinho branco no chão. Aquilo novamente lhe lembrava Beatriz. O cheiro das margaridas agora era seu. Que bom. Pelo menos ele ainda tinha alguma coisa.



Pois é, você disse que me viu outro dia, subindo a Augusta, eu tava usando um vestido, você tava bêbado, e quando ela chegou perto, nem era eu. Não era eu, não. Mas acho que eu te vi também, noutros outros dias. Te encontrei várias vezes no metrô de Viena, por acaso, um abraço e te ligo mais tarde . Não estava em lugar algum. Te deixei tantas várias vezes sentado naquele bar com a conta após desentendimentos políticos fóbicos amorosos literatomusicais, ou ivernos, por debaixo. Ou te achei esquecido nos bolsos dos casacos depois de um verão inteiro ou numa pedra solta, na qual de repente tropecei e machuquei o pé, não havia nada sob ela. Esperando nos consultórios dos dentistas. Marcando um encontro perto daquele monumento naquela praça perto daquela árvore junto a tal estação. Ou bêbado, desolado, me abraçando pela cintura por não conseguir se levantar. Passeando com o cachorro, vestido numa calça velhinha de pijama, debruçado sobre a avenida. Jogando as flores no chão, me esperando naquele small café em Berlim (Lou nos falou dele, Lou estava certo e nós estávamos completamente errados), o isqueiro, o maço sobre o livro fechado, o meu tempo inconsciente. Eu vim aqui e olhei. Contei cada achado e perdido do inventário do seu morto.



Do quarto de despejo, a mãe retirava antigos bens de seu avô morto. Roupas, livros de Direito, cadernos ilegíveis, caixas. Curioso, ele mexia nas antiguidades. Sai daí, menino, tem muita poeira, você sabe como são os seus pulmões, vai ter crise asmática de novo. Asma não vinha pra cá desde os nove anos. Ele sabia. Ia se retirando quando viu um enorme objeto preto. Não, preto não era. Era azul marinho, azul petróleo, bem fundo e distante. Retirou-o da imunda pilha de coisas e não pôde acreditar na máquina de escrever que encontrara. Dessas antigas, grandes, paradas já há anos. Será que ainda funciona? Perguntou à mãe. Não sei, ela respondeu, por que você não experimenta? Ele testou todas as teclas, uma por uma e todas as letrinhas estavam por lá, algumas travadas. Limpou-as com algodão. Por algum motivo, não havia mais tinta. É que tá sem fita, filho, ela disse. Sim, aquela fita que você coloca para escrever. Correu até a papelaria e comprou-a com seus últimos trocados que em outras épocas serviriam para amarelar os dedos renovar mágoas com a euforia do dia anterior.
Demorou meia hora para conseguir encaixar a fita na máquina. Quando tudo estava bem e os seus dedos estavam imundos de tinta, ele se lavou e se sentou para escrever. Mas escrever o que? Primeiramente Beatriz. Escreveu Beatriz todinha no papel em branco. Quando ela já estava pronta, colocou-a numa pasta e escreveu a história do avô, das tias, da mãe. Escreveu a história do homem no bar com a mão em sua coxa e escreveu a história dos sushis dos rapazes do andar de baixo. Escreveu das margaridas e do frio.
Os papéis não mais brancos se empilhavam sobre a mesa e os inválidos eram rasgados e jogados no lixo. Que fúria rasgar papel. Os dias se passaram e a pilha letrinhas foi aumentando. Pensou na torre de babel, grossa e herege.
A mãe levava leite morno para que ele não parasse de escrever. O que esse menino tanto escreve, meu Deus? Mais café. Ele continuou e continuava. Tudo fluía, caudaloso rio. Fazia um sentido maior que a vida. Era aquela a razão para a sua estadia naquele planeta tão cheio de novela, noticiário, ozônio, cerveja, amarelo? Não sabia. Só sabia que as histórias o viciavam.
Depois de quarenta dias e quarenta noites no mar e no deserto, ele parou e se levantou para descansar. O corpo doía, mas havia o orgulho por sua obra. Era o seu universo. Parou diante da janela e não viu mais as pessoas. Enxergou apenas o céu doloroso cheio de cinza. Colocou a mão para fora e recebeu, gentilmente, as primeiras gotas de chuva.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

dezembro

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Estávamos andando lado a lado, e dessa vez a chuva era tão fina que nem precisar abrir o guarda chuva nós precisamos. Meu olho procurou o seu, você interrompia a frase todas as vezes que eu te olhava por muito tempo para recomeçar sete ou oito segundos depois, quando o sinal abria e nós podíamos atravessar. Gaguejava. Falou a mesma coisa da minha irmã, duas vezes. As casas, deste, do outro lado da rua, eram antigas, algumas estavam abandonadas, e dessa vez eu te interrompi falando dos ladrilhos xadrez de vermelho e branco no chão que aos poucos ia sendo consumido por um mato injusto que crescia no jardim esquecido. As casas, suas varandas, seus cortejos. Pensei na cintura alta das saias das moças e do tecido dos vestidos, e dos presentes de casamento. Eu e você, nossas alminhas velhas, nossos gostos pela memória, pela delicadeza. Eu disse, que lugar longe para estacionar um carro, você disse, se eu fosse estacionar mais perto teria que ir até o centro e voltar, mãos únicas, mudanças de sentido. Mas não foi uma reclamação. Não entendeu. Eu estava gostando daquela caminhada, daquelas casas. Quanto tempo nós temos? Você perguntou, eram sete horas da noite – na verdade, tarde, por que o dia ainda estava claro ao modo da chuva. Você disse que queria me mostrar as suas casas preferidas no seu bairro. Verão aos vinte graus, dias e dias daquela precipitação inocente. Eu estava morrendo de frio nas pernas, apesar da meia, dos sapatos, o erro de um vestido e de um casaco fino demais para passar o dia todo fora com você. Parecia com alguma das histórias que eu tinha escrito no estúdio, eu queria ter mencionado, em algum dos meus cadernos. Na minha casa, uma prateleira deles, ou mais. Vinte anos de esboços, almejo te ver imaginando. Tenho medo de que os esboços caiam nos seus dedos, ou coisa parecida, mãos bonitas folheando meu passado. Garatujas. Você abre a porta e entra, abre minha porta por dentro pra eu entrar. Eu entro. Você vai ligar o carro, fazer alguma coisa assim, nos próximos quinze minutos, você pretendia me mostrar as casas, então eu vou, eu me inclino, toco sua barba, e você vem de repente e me dá um beijo atemporal. Um carro antigo, numa tarde antiga, num bairro antigo, eu já não posso mais dizer em que ano estamos, que idade temos, o quão nosso gesto parece ser proibido e livre ao mesmo tempo, as gotas da chuva engrossam e começam a descer no pára-brisa que aos poucos se molha por fora e se embaça. Minutos antes estávamos olhando pelos vidros da sala, a gente olhou como a chuva deixava tudo mais real lá fora, parecia uma fotografia; a constatação foi sua. Quando eu começar a perder a memória de novo, você repetirá esse caminho, repetirá suas falas para que eu repita as minhas em seguida, repetirá cada gesto e repetirá um beijo complacente para mim.

sábado, 5 de dezembro de 2009

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...mas quando é que nós vamos começar a nos destruir de novo?

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

nunca

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Tem a mariposa aqui até agora. Ela tá aqui comigo desde quando escureceu. Ela assistiu minha noite inútil, ela sabe que eu não fiz nada. Não conversei com ninguém. Não li. Fiquei ouvindo chuva, carro na rua, fala de vizinho. Ouvi as mensagens de voz ecoando da sala para cá, quando eu não atendi ao telefone; uma perguntava se tava tudo bem, outra cobrava um projeto, outra queria desmarcar um encontro triste e inútil, o quarto dizia saudade. Fui deitar cedo, olhei pela janela, a cidade já estava meio apagada. No escuro, o pessoal acendeu as luzes, e uma neblina ficou suspensa em cima dos prédios. Depois as luzes se apagaram aos poucos. Ela continua aqui, é uma condenação. Ou você atura uma mariposa, incomodado pelas asas batendo nas paredes, ou você a mata e convive pesaroso com a morte dela. Grudou na minha janela, vai escalando patinha por patinha, e ao voar se depara com o vidro de novo. Retardada. Tiro o chinelo, ergo na altura dos ombros, ela voa para a luz e cai no chão. Está bem perto de mim agora. Eu não consigo me decidir.